quinta-feira, 22 de abril de 2010

Você é o que dá pra sua flora intestinal de comer


Esse título é uma óbvia referência ao dito popular que diz que você é o que você come. Então vou começar esse texto refletindo sobre o que somos nós. Nosso corpo é o produto da fusão de um gameta de cada um de nossos pais. Essa célula fusionada tem o incrível poder de se multiplicar e se desenvolver nesse corpo que nós temos hoje. Mas assim que deixamos o ambiente estéril da membrana placentária, zilhões de microorganismos encontram nas milhares de curvas do seu corpitcho um interessante nicho ecológico. Mas então? O quanto esses microorganismos são importantes para o produto final que é o nosso corpo? Para simplificar, vou me deter a uma população, a das bactérias que vivem em seu intestino.

As primeiras bactérias a colonizarem o seu intestino vem dos primeiros líquidos que você ingere (fórmula, ou leite materno ou leite de seja lá quem te amamentou). No leite materno, além de haverem muitos nutrientes estão também anticorpos que servem como uma imunidade adquirida para o bebê. Existem diversos estudos clínicos que mostram que estes primeiros eventos, como o parto (normal ou cesariana) e o tipo de amamentação influem na composição da microbiota dos adultos (que espécies estão e em que abundância). Essa idéia foi diretamente testada por Diaz e colaboradores (2004) que observaram que filhotes de mães com deficiencia na produção de anticorpos desenvolvem diferentes abundâncias de espécies de bactérias intestinais. Espécies pioneiras são importantes porque uma vez que elas chegam a um ambiente elas o modificam, e isso determina se as espécies que virão depois serão capazes de se estabelecer. Mas isso não significa que estes primeiros eventos são determinantes, e sim instrutivos, para a composição final.

Então vamos lá, será que oque você come altera a composição de bactérias do seu intestino? Ley e colaboradores (2006) compararam a flora de indivíduos normais e obesos e observaram que os obesos possuem uma alta na proporção de bactérias do tipo Firmicutes e que se perderem peso após uma ano esta proporção baixa novamente. Mas então vem a pergunta, o aumento de Firmicutes foi causado pela obesidade ou ele por si ajudou no aumento do peso destes indivíduos? Bom, esse mesmo grupo mostrou também que este aumento de Firmicutes acontece em camundongos obesos (Turnbaugh e colaboradores 2006). Então eles pegaram um camundongo que estava livre de microorganismos e inocularam bactérias do intestino de um camundongo obeso ou de um normal. Aqueles camundongos que tiveram bactérias de obesos inoculadas engordaram mais. Mais recentemente, Vijay-Kumar e colaboradores (2010) mostraram que camundongos mutantes para uma proteína importante para o sistema immune (o receptor semelhante a Toll 5) desenvolvem diversos sintomas de obesidade como hipertenção, hiperfagia (comer muito) e excesso de gordura. E muitos destes sintomas foram reproduzidos em camundongos normais que receberam a inoculação de bactérias do intestino destes animais. Assim, existe um balanço na comunidade de bactérias do nosso sistema digestivo que é influenciado pelo nosso sistema immune. Alterações nesta composição levam a um desbequilíbrio em nosso metabolismo e, o que me chama mais atenção, a uma modificação em nosso comportamento, no caso a hiperfagia.

A dependência do nosso sitema immune em relação à nossa microbiota não para por ai. Associada ao nosso intestino existe uma grande rede de tecido linfático, o GALT. Este tecido é importante pois os linfócitos precisam ir até lá para passarem por sua maturação final, onde começam a produzir os diferentes anticorpos. Acontece que as bactérias do nosso intestino são necessárias para o desenvolvimento do GALT. Isso é, sem as bactérias os nossos linfócitos não teriam aonde maturar e nós teríamos uma imunodeficiência semelhante à AIDS (ou até pior pois o GALT possui algumas outras funções). E Rhee e colaboradores (2004), mostraram que nenhuma das espécies encontradas no intestino do coelho é por si só suficiente para induzir o desenvolvimento do GALT. Somente a combinação entre algumas espécies induz. Assim, o desenvolvimento do nosso corpo de Homo sapiens não se completa sem nossos microorganismos moradores.

Bom, nós já vimos que nós influenciamos o balanço ecológico da nossa microbiota intestinal com nossos hábitos alimentares. Vimos também que a nossa microbiota influi no nosso metabolismo e comportamento alimentar. E que sem ela o nosso corpo não se desenvolve completamente. Mas o que Hehemann e colaboradores (2010) mostraram é que esta relação é muito mais interessante. Nós sempre ouvimos dizer que nós não digerimos muito bem as folhas que comemos por não possuirmos as enzimas, coisa e tal. A população do Japão então, que come muito frutos do mar, come aquela alga do Sushi só pra enfeitar mesmo não é? Não, acontece que estes caras mostraram que as bactérias do intestino de grande parte da população japonesa “roubou” os genes para digerir polissacarídeos de alga encontarados em bactérias marinhas. Assim, a cultura e os hábitos alimentares de um povo moldaram a microbiota para um melhor aproveitamento calórico daquele alimento mais comumente consumido. Isso tem diversas implicações como por exemplo a influência de tais eventos de transferência lateral de informação na evolução de hábitos alimentares, como a herbivoria.

No fim, vimos que esse corpo que você diz ser seu é um produto de todos os genomas de quem o habita, de como vocês percebem o ambiente e se comportam nele, e da história da sua relação. É hora também de pararmos de pensar na evolução como um processo interno. Nós não somos produtos somente da seleção de mutações. Todas estas coisas enumeradas acima podem trazer novidades que podem ser herdadas.