sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Borboleta é o que ela come: Influência da dieta larval na seleção de parceiros

Olá a todos, estou ressuscitando o blog depois de muito tempo. Agora como professor da UFRN. Estou também inaugurando a publicação de textos dos alunos do curso de graduação "Ecologia, Evolução e Desenvolvimento". A primeira é a aluna Gabriela Neres de Oliveira e Silva. 



Muitas espécies de borboletas são conhecidas pelos padrões observados nas asas. Além da beleza incontestável, os padrões das borboletas podem ter diversas funções ecológicas, como possibilitar a termorregulação do inseto, camuflagem e mimetismo, quando o animal finge ser um outro (mais perigoso por exemplo) para seu benefício ecológico. Entretanto, pouco se sabe como estas características surgem. Em muitas espécies com dimorfismo entre sexos, os padrões das asas podem ser decisivos para a seleção sexual. Seleção sexual pode ser entendida como uma competição entre indivíduos de uma espécie para a realização da cópula. Assim, existe uma pressão pelo desenvolvimento de caracteres que confiram aos indivíduos maior sucesso em copular. Estes fenótipos podem, por exemplo, indicar aos parceiros que o acasalamento com aquele indivíduo terá uma vantagem. Esse mecanismo pode selecionar comportamentos sociais das espécies². Mas na maioria das borboletas, ainda se desconhece qual o mecanismo de evolução e manutenção desses padrões das asas. A borboleta que falarei hoje transmite sinais visuais que atrairão ou não os machos dependendo do que come quando lagarta.

Como os padrões surgem nas asas das borboletas? Fora todas as questões químicas e físicas dos pigmentos, o processo de síntese dos pigmentos ocorre durante o estágio de pupa do inseto. Além das características gênicas das espécies, outro fator importante nesse processo é a dieta da larva. As larvas de borboletas não se alimentam de qualquer planta (ou mesmo nem de plantas), e essa relação forte entre determinada espécie de borboleta e espécie de planta é essencial e até indica uma coevolução. As larvas de borboletas azuis (Lycaenidae), por exemplo, absorvem e armazenam flavonoides das plantas que se alimentam. Durante a síntese de pigmentos na pupa, esses flavonoides são então transferidos para as asas. Flavonoides são compostos encontrados principalmente em flores, botões de flores e frutas jovens. Todos eles absorvem ultravioleta e, dependendo do tipo, podem ter cores que conseguimos enxergar. Observe na figura abaixo a proximidade do espectro de luz ultravioleta e o da luz visível por nós.
Peter Hermes Furian/ shutterstock.com
Onde eu estou querendo chegar com toda essa explicação? Dois pesquisadores buscaram compreender qual a função ecológica da absorção de flavonoides em Polyommatus icarus, uma espécie de borboleta azul em que mais se estudou essa absorção. Ao saber que a presença dos flavonoides mudava as cores das asas, eles se perguntaram se isso transmite algum sinal entre indivíduos da mesma espécie e qual informação esse sinal transmite.
A nossa P. Icarus apresenta um notável dimorfismo sexual (veja figura abaixo), em que o macho é azul na parte dorsal e a fêmea apresenta uma cor marrom escuro. Na parte ventral, as cores são mais próximas, sem tanta diferenciação.  No que diz respeito ao comportamento de corte, depois que os machos localizam uma fêmea eles se aproximam e podem usualmente agitarem-se ao redor dela, até pousar e tentar copular. Pode acontecer de o macho desistir no meio do “ritual” e a fêmea ainda pode recusar o acasalamento. Logo ambos os sexos apresentam essa escolha de parceiro.
P. Icarus: A. Espécime macho e B. um espécime fêmea.

O estudo foi focado no comportamento de corte dos machos com as fêmeas. As larvas foram criadas em duas dietas, ambas com a mesma base alimentar, só que uma dieta com adição de flavonoide que a larva absorve (borboleta com flavonoide) e outra não. Após chegarem à fase adulta, as borboletas fêmeas foram mortas por congelamento e desidratadas em uma sala para serem usadas como modelos de atração dos machos.  Com isso, eles compararam o reflexo e o espectro de luz das asas de cada tipo de borboleta, tanto na visão dorsal quanto ventral, procurando compreender melhor as diferenças nas questões de ondas luminosas. Para olhos humanos, as asas podem apresentar nenhuma diferença, mas é possível notar com os dados coletados que o reflexo da luz ultravioleta, que não é visível para nós, é muito maior na borboleta sem flavonoide (veja na figura abaixo). 
Padrão de coloração das asas das fêmeas. A,B. Fotografias nos comprmentos de onda visíveis aos nossos olhos.  C,D. Fotografias em comprimentos de onda U.V. . A coluna da esquerda mostra um animal controle (sem flavonoides na dieta) e a coluna da direita uma animal que absorveu flavonoides e absorve muito mais U.V. em suas asas (ao invés de refletir como o animal controle).


Mostrou-se ainda que apenas as manchas brancas (e pouco da cor de fundo da asa) na parte ventral têm uma grande diferença de reflexão da luz, sendo a borboleta sem flavonoide que mais reflete. Os pesquisadores ainda simularam fotorreceptores de borboletas, sendo eles do azul, verde, vermelho e também ultravioleta. No fotorreceptor de ultravioleta obteve-se diferenças de valores evidentes entre as cores da parte ventral da asa do inseto.Sobre a análise de comportamento dos machos sobre as fêmeas, os pesquisadores fizeram tanto experimentos em laboratório quanto em campo, em ambos os casos utilizando fêmeas modelos. Nesses experimentos, procurou-se evaporar qualquer substância volátil para que apenas o fator visual importasse na escolha da fêmea. A conclusão geral de ambos os experimentos foram que os machos eram mais atraídos ou faziam mais “agitação” no voo pelas fêmeas com flavonoides nas asas. Além disso, essas mesmas fêmeas em que a superfície ventral estava mais visível (essa é a superfície que apresenta diferenças com relação ao espectro de luz ultravioleta) chamaram mais atenção ainda. E mais incrível ainda, os pesquisadores pegaram fêmeas sem flavonoides e “pintaram” a superfície ventral de forma a parecer com fêmeas com flavonoides (analisaram o espectro para ter o máximo de semelhança) e os machos realmente se atraíram mais por estas!

Dentre as variadas conclusões, pode-se destacar que as larvas de borboleta crescem melhor quando se alimentam de flores e botões, partes da planta com flavonoides que são absorvidos, e se alimentando dessas partes as relações com formigas podem acontecer e ser favoráveis às lagartas, pois as formigas ficam com as folhas e as lagartas com as flores, não acontecendo competição. Por isso, a incorporação de flavonoides pode ser uma forma de indicar uma boa alimentação na fase jovem do inseto. Logo, demonstra um parceiro de melhor qualidade e isso pode ser indicado nos padrões das asas. Ademais, o tamanho do corpo pode indicar uma fêmea mais fértil e as fêmeas com flavonoides apresentam uma massa maior. Este trabalho mostrou que a atração é influenciada pelos fatores visuais e principalmente relacionada à superfície ventral nas asas.
Em suma, os flavonoides absorvidos pelas borboletas durante o estágio larval podem mudar claramente os padrões das asas e isso influencia na escolha dos machos para a cópula. Os efeitos dos flavonoides nas cores quase sempre ocorrem com elas alcançando até ondas ultravioletas. Apesar de serem necessárias mais bases teóricas e matemáticas para estudar essas ondas é possível observar o impacto dessas interações da larva e seu ambiente, mais especificamente seu alimento, na ecologia, relações intraespecíficas, e até podendo refletir em aspectos para a evolução da espécie.

Referências
KNÜTTEL, Helge; FIEDLER, Konrad. Host-plant-derived variation in ultraviolet wing patterns influences mate selection by male butterflies. Journal Of Experimental Biology, Cambridge, v. 204, n. 14, p.2447-2459, 19 abr. 2001.