sábado, 10 de março de 2012

Vai pra antártica? Vai pra praia? Passaporte e edição do RNA!




Os organismos ao redor do planeta se adaptaram as mais extremas condições climáticas. Agora imagina aqueles animais que resolveram viver nas geladas águas do mar da Antártica. Um dos protagonistas da nossa história de hoje, o polvo Paraledone sp. (esse cara aqui em cima), vive em águas a -1,8oC que estão em equilíbrio com o gelo do mar. Acontece que um dos desafios para animais que se adaptaram a este ambiente foi mudar a velocidade com a qual os canais iônicos se abrem e fecham, o que é importante para a transmissão de sinais elétricos ao longo dos neurônios. Um estudo recente mostrou que ao invés de mutações nos genes desses canais, esses polvos modificam o RNA que os codificam de maneira diferente nos polos.

Entre os anos 40 e 50, uma série de estudos realizados em axônios muito grandes (os axônios gigantes da figura aqui em baixo) presentes nas lulas (que curiosamente também são moluscos cefalópodes, como nossos protagonistas) estabeleceram as propriedades iônicas das membranas dos neurônios necessárias para a condução do sinal nervoso.
As membranas das células possuem uma diferença de carga elétrica entre suas faces interna e externa, a interna é negativa e a externa positiva. Esse potencial, chamado potencial de repouso, é ativamente criado pela célula através da regulação da permeabilidade da membrana aos diferentes íons presentes em seu interior e exterior. Quando uma sinapse que excita o neurônio é ativada, canais que liberam a entrada de cátions, íons positivos, abrem e aumentam a carga interna da membrana. Assim, a membrana passa de um estado polarizado, onde a face interna era mais negativa do que a externa, para um estado despolarizado. Pensando agora na extensão da membrana do neurônio, nós temos um local específico da membrana, aquele na sinapse, despolarizado e o resto da membrana no potencial de repouso, polarizado. Essa diferença de potencial gera uma voltagem na membrana e leva à abertura de canais dependentes de voltagem, que se abrem sequencialmente de acordo com a passagem da corrente liberando a entrada de Na+ na célula. Após a passagem da corrente, a membrana deve voltar a seu potencial de repouso. Enquanto isso não acontecer, este neurônio não vai ser capaz de transmitir uma atividade sináptica seguinte. Para restabelecer a carga negativa interna, canais de K+ se abrem para a saída deste cátion da célula. Acontece no entanto, que a velocidade de abertura e fechamento destes canais de K+ depende da temperatura em que este animal, e seu neurônio, estão.



Seguindo a lógica Mendeliana que aprendemos na escola, o que deveríamos esperar? O lógico seria pensar que aqueles animais que foram viver em regiões muito frias selecionaram mutações nos genes dos canais que possibilitem que eles tenham uma dinâmica de abertura e fechamento mais rápida nestas temperaturas. E foi exatamente oque os pesquisadores Sandra Garrett e Joshua Rosenthal (2012), da Universidade de Porto Rico, testaram. Eles compararam os genes dos canais de K+ do polvo da Antártica, Paraledone sp., e de um polvo que eles coletaram nos corais de Porto Rico, o Octopus vulgaris, que vivem numa temperatura que varia entre 25 e 35oC. Acontece que as sequências eram bem similares e quando estes canais foram expressos em oócitos de sapos pela injeção do DNA, suas propriedades eletrofisiológicas não eram diferentes em qualquer temperatura. O canal do polvo antártico não compensa para o frio, ele abre 14 vezes mais devagar e fecha 60 vezes mais lento no frio do que o canal porto-riquenho a 25oC.

Mas e então, o que poderia estar acontecendo? Acontece que muita coisa pode acontecer após o gene ser lido para fazer o RNA mensageiro. Uma das modificações possíveis é a ação de enzimas chamadas deaminases de adenina que transformam adeninas em ionodinas, um nucleotídeo diferente, que são lidas como guanina e podem causar a alteração do aminoácido que é lido naquele códon. Eles então isolaram os RNAs de nervos das diferentes espécies e encontraram diferentes pontos de edição. Alguns desses pontos eram exclusivos de uma espécie. E quando canais com estas substituições foram expressos, alguns mostraram uma adaptação a temperatura, lentificando a resposta no canal tropical ou acelerando o fechamento no canal antártico.

Estes autores então coletaram diversas espécies de polvo ao longo do planeta e observaram que o aparecimento da edição que leva à aceleração do fechamento em temperaturas frias é altamente correlacionada com a temperatura da água onde a espécie vive. Isso inclui espécies que estão na Antártica e outras no polo norte ou regiões temperadas da Califórnia!

É certo que ainda precisamos saber como a edição do RNA é diferente entre as espécies de diferentes temperaturas. Não acredito que seja a seleção de uma mutação que leve a mesma adaptação em espécies tão distantes geograficamente. Talvez estejamos diante de um mecanismo de resposta ao ambiente, plasticidade, que possa ser selecionado. Como já discutimos por aqui, existem mecanismos de seleção sobre a resposta ao ambiente (deem uma olhada nos posts sobre o Waddington e sobre o Schmalhausen). Neste caso parece um mecanismo interessante para a adaptação sobre o canal sem modificar a base dessa sequencia tão importante, lá no DNA.

Para um bom texto sobre a propagação do potencial criado na sinapse veja aqui.

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