quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

O comportamento maternal imprime alterações no DNA da prole: A volta do Lamarckismo?



Este é um artigo que eu escrevi ano passado para uma revista de divulgacão científica. Na verdade esta é a versão sem cortes e com o título original. Aqui faco um apanhado de varias historias que me intrigam já a algum tempo e que juntei para discutir sobre a possibilidade de evolução independente das mutações genéticas.



Estamos no ano em que a publicação da “Origem das Espécies” completa 150 anos e o nascimento de seu autor, Charles Darwin, completa 200 anos. Outra importante contribuição para a forma como pensamos em biologia hoje em dia foi a elaboração da teoria de “Herança Cromossomal-Mendeliana” que descrevia mecanismos de herança de características segundo a relação dos diferentes alelos vindos dos dois pais. Essas duas teorias foram unidas por um movimento de cientistas chamado de “Síntese Neo-Darwinista”. Então, durante todo o século XX, a idéia de que os alelos levam ao fenótipo e que este pode ser alvo de seleção natural através da seleção dos mesmos dominou a forma como pensávamos em biologia. No entanto, alguns trabalhos recentes mostram que o comportamento maternal pode ser influenciado por mecanismos de herança independentes da seqüência do DNA, através da aquisição de informação ambiental. A idéia de aquisição de informação ambiental nos remete a uma teoria evolutiva ainda mais antiga, a teoria Lamarckista de 1809. Discuto aqui a possível volta da relevância desta teoria em uma visão moderna sobre a teoria evolutiva.

Antes da publicação da “Origem das espécies” prevalecia a idéia de que as espécies eram entidades fixas, não mudavam ao longo do tempo. Um dos primeiros a publicar uma outra visão sobre as espécies foi Jean Baptiste Lamarck, há 200 anos. Nessa primeira afirmação de que as espécies seriam entidades mutáveis, Lamarck propôs que as espécies apresentariam mudanças à medida que o ambiente fosse apresentado para melhor se adaptarem a ele. Outro mecanismo foi proposto quando Darwin observou que as alterações poderiam acontecer por acaso e a seleção natural faria com que somente aquelas adaptadas ao ambiente permanecessem. É bom ressaltar aqui que os dois mecanismos de aparecimento de novas características, por aquisição de informação ambiental ou ao acaso, não são necessariamente excludentes. Algumas características podem ter aparecido por acaso e outras terem sido adquiridas. De fato, nos últimos anos foram descritos diversos mecanismos moleculares nos quais o ambiente pode imprimir uma alteração na expressão gênica e esta mesma alteração pode ser transmitida através das gerações. Para entender essa história, vamos nos deter a um deles, o remodelamento da cromatina.

Estamos acostumados a ver figuras que demonstram a regulação da expressão gênica em que fatores de transcrição se ligam a uma fita de DNA para facilitar ou reprimir a ação da enzima que produz o RNA, a RNA polimerase. Nesta representação, o DNA sempre aparece como uma linha aonde as proteínas se ligam. Só que muitas vezes nos esquecemos que na verdade dentro da célula o DNA não está linearizado. Este está organizado em estruturas de maior complexidade. A dupla fita de DNA dá voltas ao redor de octâmeros de uma proteína chamada histona e esta estrutura é chamada de nucleossomo. Já os nucleossomos podem estar intimamente associados ou mais afastados, formando heterocromatinas ou eucromatinas respectivamente. A grande importância dessas estruturas é que elas regulam o acesso das proteínas que promovem a síntese de RNAs a partir da fita do DNA, quanto mais fechada a heterocromatina mais difícil chegar ao DNA. Nesse fechamento ou não da cromatina estão envolvidas diversas alterações químicas nas histonas e também a metilação de citosinas da seqüência de DNA. O que é importante então para compreendermos a idéia aqui é que a metilação do DNA está associada ao silenciamento da expressão gênica através da compactação da cromatina.

A outra parte da história que precisamos saber é como se dá a regulação neural do comportamento maternal em mamíferos. O comportamento maternal compartilha a regulação de um circuito envolvido no comportamento de estresse conhecido como eixo hipotálamo-pituitária-adrenal (HPA). O hipotálamo quando recebe um estímulo de estresse libera o hormônio de liberação de corticotropina (HLC) no sistema sanguíneo que fornece sangue à pituitária anterior. O HLC estimula a pituitária a liberar o hormônio adrenocorticotrópico (HACT) na corrente sanguínea. O HACT leva as glândulas adrenais a liberar cortisol, um hormônio que age sobre diversas partes do corpo para este atingir o estado necessário para a resposta à situação estressante. O importante para a entendermos o trabalho discutido aqui é que essa via de ativação do estresse possui uma alça de regulação negativa em que a alta de corticóides é percebida pelo sistema nervoso central que por sua vez inibe a liberação de HLC pelo hipotálamo. Assim, quando os níveis de corticóide alcançam um certo nível, o organismo possui um mecanismo para desligar a sua liberação. Um importante sensor é o hipocampo através da expressão do receptor de glicocorticóides (RG). O interessante então é que a expressão de RG no hipocampo depende de como aquele animal foi cuidado por sua mãe. Ratos filhos de mães cuidadosas expressam níveis maiores de RG do que os filhos de mães que os lambem pouco. Assim, os filhos de mães que cuidam pouco possuem um hipocampo que é menos eficiente em perceber os níveis de corticóides e inibir a liberação de HLC pelo hipotálamo. Estes animais então, atingem níveis mais altos de corticóides e respondem mais intensamente ao estresse.

A grande descoberta feita pelo grupo de Michael Meaney, na McGill University em Montreal, foi que dependendo do cuidado maternal a seqüência de DNA que regula a expressão do gene de RG (a região promotora) é diferencialmente metilada em suas citosinas. Assim, os filhotes no primeiro dia pós-natal possuem essa seqüência específica metilada e em seguida os filhotes de mães cuidadosas a desmetilam enquanto os de mães que cuidam pouco não. Assim, o DNA que regula a expressão do gene de RG no hipocampo de ratos mal cuidados fica enovelado em heterocromatina e o gene é pouco expresso. Ainda mais interessante é que as fêmeas dessa prole por suas alterações na regulação do eixo HPA repetem o comportamento de suas mães. E essa herança não é genética porque se colocarmos filhos de mães cuidadosas para serem criados por mães que cuidam pouco e vice-versa eles desenvolvem a metilação de acordo com sua mãe de criação.

Mais recentemente o mesmo grupo publicou a primeira evidência de que a regulação epigenética (esse é o termo que vem sido utilizado para descrever mecanismos de regulação gênica que independem da seqüência de DNA) do comportamento maternal seria também importante em humanos. Eles tiveram acesso ao cérebro de vítimas de abuso infantil que cometeram suicídio e compararam com cérebros de pessoas que cometeram suicídio, mas sem histórico de abuso e com controles com outras causas de morte e também sem histórico. Dentro desses três grupos as vítimas de abuso possuem menores níveis de RNA mensageiro de RG e maior metilação no promotor deste gene. Estes dados mostram que, como em ratos, há também a aquisição de uma marca no DNA de humanos que depende do comportamento parental ao qual somos submetidos.

A aquisição de caracteres do ambiente nos remete a teoria evolutiva proposta por Lamarck. Esta teoria diz que os organismos passam por alterações internas para se adaptar ao ambiente e que estes caracteres adquiridos podem ser passados às próximas gerações. Lembre-se que esta teoria não se contrapõe à de seleção natural porque ambas podem co-existir como mecanismos de modificação, mas esta foi então completamente refutada pela distinção gameta-soma proposta por August Weismann no fim do século XIX. Segundo esta distinção seria impossível que uma característica adquirida pela pele, por exemplo, fosse passada para a próxima geração já que esta não está contida nos gametas. Assim, se você for à praia e adquirir um bronzeado antes de ter um filho, isso não vai causar o escurecimento da pele do bebê. Mas como vimos aqui, na regulação epigenética do comportamento maternal a informação não é registrada na prole antes de sua mãe começar com seus cuidados. Isto é, a informação está passando através das gerações de forma independente dos gametas. E como as filhas reproduzem o comportamento das mães é possível que as netas recebam uma informação impressa em seus DNAs que foi adquirida por suas avós.

Agora então peço aos leitores que façam um esforço em imaginar um cenário. Imaginem que uma rata cuidadosa, a avó, quando teve seus filhotes, dentre eles a mãe, foi obrigada a passar longos períodos procurando por comida porque a oferta era escassa. Essa ausência na toca onde estão os filhotes fez com que estes sentissem um cuidado maternal menos freqüente. Assim, nos primeiros dias de vida essa prole não teve o estímulo que dispara a desmetilação do promotor do gene de RG. Esses animais vão ser mais sensíveis ao estresse o que inclui as mães da próxima geração. Agora imagine que quando as mães tiveram seus filhotes, a oferta de alimento era muito boa e em pouquíssimo tempo elas conseguiam voltar para a toca. Lembrem-se que as fêmeas que cuidam mal nos experimentos que discutimos acima estavam o tempo todo dentro da gaiola junto com seus filhotes. Então, a simples presença da mãe não garante o cuidado maior. Assim mesmo tendo mais tempo para passar na toca as mães da segunda geração cuidam mal dos seus filhotes. Os filhotes herdam então uma informação que veio do ambiente quando suas avós tiveram suas mães. Essa informação é passada de forma independente dos gametas.
Imagine então que ser mais estressado seja uma vantagem evolutiva, em um ambiente com muitos predadores por exemplo. Uma forma de fixar esse comportamento ao longo das gerações seria selecionar animais que tenham a seqüência do promotor menos responsiva ao ambiente. A esse tipo de seleção dá-se o nome de “Assimilação Genética” que foi proposto por Conrad Waddington nos anos 50. Waddington fez um experimento muito simples em que ele induzia defeitos nas veias das asas da mosca de fruta com uma exposição dos embriões a um choque térmico. Assim, ele começou a selecionar as moscas que tinham mais defeitos e cruzá-las entre si simulando uma situação onde o defeito fosse uma vantagem evolutiva. Mas o Waddington queria ver se a informação ambiental podia ser assimilada então em alguns embriões filhos de pais com defeitos ele não fazia o tratamento com choque térmico. Então ele observou que nesses controles depois de algumas gerações os defeitos começaram a aparecer em animais que nunca foram expostos a choque térmico. Assim, o gatilho ambiental havia sido incorporado aos indivíduos que desenvolviam o fenótipo mesmo sem o estímulo. E essa informação não é fruto de uma mutação porque acontece em vários indivíduos daquela geração enquanto a mutação só acontece em um indivíduo de cada vez.

Então, voltando ao comportamento maternal, uma possibilidade seria que o promotor do gene de RG passe em uma dada geração, após muitas em que o comportamento se repita, a ter o seu padrão de metilação independente do ambiente. Assim as fêmeas repetiriam o comportamento daquela antepassada indefinidamente. Essa população pode então se separar de outra que continua responsiva ao ambiente e haver o processo de especiação. No gênero de roedores Microtus, existem duas espécies com diferentes tipos de cuidado parental. Microtus ochrogaster é uma espécie que vive nas pradarias, é monogâmica e possui o cuidado parental de ambos os pais, os casais se repetem na seguinte época de acasalamento. Já Microtus montanus vive nas montanhas e como a maioria das espécies de mamíferos é poligâmica e só possui cuidado maternal. Poderiam estas duas espécies terem divergido a partir de modificações por caracteres adquiridos? De fato já foi mostrado que a sinalização por glicocorticóides atua na escolha dos pares nesses animais.

Vale lembrar que aqui não há vontade do organismo em se adaptar ao ambiente, uma característica usualmente atribuída à teoria Lamarckista. Ainda falta uma evidência que mostre que uma informação epigenética herdada pode levar a especiação. Mas devemos nos manter abertos a possibilidade de uma característica ambiental impressa de alguma forma em um antepassado e que seja herdável por mecanismos independentes da fertilização de gametas seja suficiente para causar a origem de uma nova espécie. A incorporação de informação ambiental pode ser muito importante por afetar muitos indivíduos de uma geração ao mesmo tempo e assim ser mais facilmente incorporada do que uma mudança causada por mutação, principalmente em populações muito grandes.

“No mesmo clima, habitats e condições muito diferentes causam a princípio meramente alterações nos indivíduos expostos à elas; porém, ao longo do tempo a mudança contínua no habitat dos indivíduos aos quais me refiro, vivendo e reproduzindo nessas novas condições, induz alterações nestes que se tornam mais ou menos essenciais para a sua existência; portanto, após uma longa sucessão de gerações esses indivíduos, originalmente pertencentes a uma espécie, se tornam no fim transformados em uma nova espécie diferente da primeira.”
Jean Baptiste Lamarck, 1809

Sugestões de leitura:
Lewontin, RC (2002) A tripla hélice. Companhia das letras.

Waddington, CH (1979) Instrumental para o pensamento. Itatiaia

Pros mais entendidos:
Waddington CH (1953) Genetic Assimilation of an Acquired Character. Evolution, Vol. 7 pp. 118-126

McGowan e colaboradores (2009) Epigenetic regulation of the glucocorticoid receptor in human brain associates with childhood abuse. Nat Neurosci. 12:342-8.

Weaver e colaboradores (2004) Epigenetic programming by maternal behavior. Nat Neurosci. 7:847-54

3 comentários:

Mireile disse...

Obrigada pela reflexão a respeito da epigenética, ressaltando o estudo desenvolvido pela equipe de Meaney. Foi de muita utilidade para a apresentação do meu trabalho de fisiologia.

Gabi Mendoza disse...

Dudu....Que mente mais aberta!! Adorei! To aqui cheia das questões... E viva Lamarck!!

Peterson Lopes disse...

Muito elucidativo, esse texto! De fato, desses que colocou, eu só havia lido o texto do McGowan. Porém, eu não me lembro... Você sabe como o cuidado das mães desmetila o trecho que codifica para a RG (digo, é conhecido o mecanismo fisiológico que desencadeia a desmetilação a partir das lambidas maternas, por exemplo?)?