quarta-feira, 31 de março de 2010
O mistério da flutuação de populações de linces e lebres: Ponto pro Lamarck
Bom, lá vai a minha veia lamarckista pulsando de novo. Existe uma história muito contada nos livros de ecologia que é a relação entre populações de linces e lebres. Lebres, como todos sabem, são animais que gostam muito de se reproduzir e o fazem muito rápido. Assim, em épocas em que os linces não são muitos, a população de lebres aumenta (claro que dependendo de outras coisas como a oferta de comida). Mas ai então, os linces tem esse aumento na sua oferta de comida (as lebres) e começam também a reproduzir. Quando a população de linces então aumenta, por consequência a população de lebres diminui, por mais das pobres serem devoradas. Só que ai então chega um momento em que os linces comeram demais e sua população entra em colapso tendendo a diminuir. E ai, por reproduzirem mais rápido, a tendência seria que a população de lebres se recupere por falta de predação.
Mas não acontece bem assim. Existe uma fase, logo após o declínio dos linces, em que as lebres não reproduzem muito e continuam a cair mesmo com abundância de alimentos. Esse é um mistério que há muito tempo intriga os ecólogos. Eu lembro de certa vez ver uma palestra no congresso de ecologia explicando que esse comportamento imprevisível das lebres se deve a um comportamento caótico de sua população. Mas bom, colocar a teoria do caos no meio e só uma forma elegante de dizer que não faz a menor idéia do que tá rolando (para uma boa discussão sobre isso veja o capítulo "The end of Natural history?" no "Biology under the influence" de Lewontin e Levins, já vi uma tradução pelas livrarias).
Mas e ai? Oque que tá rolando com as lebres após o sumiço dos linces? Bom, acontece que as lebres gostam de sentir um clima na hora de reproduzir. Se elas estão estressadas elas não reproduzem muito. E se tem uma coisa que deixa elas estressadas é esse tal de lince. Mas se a população de lince entrou em declínio e tá cheio de comida, porque elas continuam estressadas? Ai entra a já famosa herança do comportamento maternal. Eu vou falar muito rapidinho agora porque eu já falei sobre isso neste blog (não lembra? Olhe aqui). Acontece que os comportamentos de stress e maternal são dependentes dos níveis de glicocorticóides no sangue. E os níveis de receptor de glicocorticóides que você expressa no seu cérebro são dependentes de se você foi bem cuidado pela sua mãe ou não. Isso é, fillhos de mães cuidadosas expressam bastante deste receptor, são menos estressados e as filhas cuidam bem de seus filhos. E o contrário vale pros filhos de mães estressadas. Sheriff e colaboradores (2010) publicaram um artigo mostrando que os níveis de corticóides nas fezes da prole (que são reflexo dos níveis do sangue)que nasceu numa época de poucos linces continua alto por algum tempo. Justamente porque suas mães eram estressadas por terem vivido numa época com linces e cuidaram mal desses filhotes. Eles tambem fizeram testes em laboratório de estresse com filhotes de fêmeas capturadas grávidas. Eles viram então que os filhotes dessas fêmeas que viveram com linces mantinham o resposta acentuada ao estresse. Assim, essas fêmeas herdaram uma informação ambiental vivida por seus antepassados que lhes foi transmitida independentemente dos genes que ela herdou através dos gametas dos seus pais.
Essa e uma confiramação que a heranca de informação ambiental pode ocorrer em populações naturais. Porém é necessário que o acompanhamento desta população seja feito por mais tempo para observar a perpetuação desta informação na população. Esses dados implicam na possibilidade de que tal forma de herança é uma possível fonte de novidade fenotípica e pode ser o gatilho para um evento de especiação.
sexta-feira, 12 de março de 2010
A anarquia celular na escolha de sexo das galinhas
Quando estamos na escola aprendemos que meninos são meninos porque tem um cromossomo Y e um cromossomo X. Já as meninas possuem dois cromossomos X e nenhum Y. Acontece que um gene presente nos cromossomos Y, o Sry, ativa a diferenciação das gônadas em testículos. Mas nem todas as diferenças entre homens e mulheres estão nas gônadas. Oque acontece é que estes órgãos produzem hormônios que sinalizam para as outras células qual é o sexo escolhido. Então para uma célula de fora do testículo do homem como uma célula muscular, por exemplo, tanto faz se ela possui o cromossomo Y ou não. A decisão é da ditadora gônada que só informa aos seus súditos qual é o sexo escolhido. Outra consequência disto é que se, por algum balanço diferente de hormônios, um menino produzir muita progesterona, as células que formam o seu peito vão fazer um peitinho mais “feminino”. Assim como meninas com muita testosterona crescem pelos nos bigodes, independente da composição cromossômica das células acima dos seus lábios.
Os organismos com dimorfismo sexual, isso é, com machos diferentes de fêmeas, definem o sexo de duas formas. Ou por mecanismos genéticos, como nós, ou por mecanismos ambientais. As tartarugas, por exemplo, tem o seu sexo definido pela temperatura em que os ovos são incubados. As fêmeas são geradas em temperaturas mais altas e os machos nas mais baixas. No buraco na areia onde a mãe coloca seus ovos, os machos são gerados na periferia enquanto as fêmeas são aqueles ovos que ficam no meio sem tocar na areia fria. Mas independente de como o sexo é definido, se genético ou ambiental, até agora acreditava-se que todas as células viviam sob a ditadura das gônadas. Mas ai então chegaram as galinhas para contrariar.
Antes de contar como as galinhas contrariaram o regime de governo celular vamos entender oque são ginandromorfos. Os ginandromorfos são organismos que por alguma razão apresentam características dos dois sexos. Isso pode acontecer por diversas razões. Uma delas é a má distribuição de cromossomos na hora da divisão celular. Quando uma célula vai se dividir, ela dobra o seu numero de cromossomos e pareia aqueles que são iguais para que na hora da divisão cada um vá para um lado. Só que podem haver erros. A síndrome de Down é um exemplo em que na geração dos gametas os dois cromossomos 21 foram para uma só célula. Esse gameta, depois de fusionado com o outro, acabou por gerar um bebê com três cromossomos 21 em cada célula. Agora imaginem um embrião que está fazendo sua primeira divisão celular para ficar com duas células. Se os dois cromossomos Y forem para só um lado, este terá uma célula com a informação para fazer meninos e outra que não tem. Assim, metade do corpo vai ter a informação e metade não. Mas tudo bem, porque um dos testículos deste menino vai ser gerado e produzir testosterona pra informar o resto do corpo o que fazer.
As galinhas também tem o sexo determinado por cromossomos sexuais. Os machos possuem dois cromossomos Z e as fêmeas possuem um cromossomo Z e um W. Só que então, Zhao e colaboradores observaram que existe uma ocorrência rara de galinhas que apresentam metade do corpo masculino e metade feminino. Olhem na foto lá em cima. Nesta galinha a plumagem branca é exclusiva de galos e o lado branco é mais fortão. Eles mostraram que o lado branco tem mais células ZZ e que o lado marrom possui mais células ZW. Mas lembrem-se, estas células estão recebendo os mesmos hormônios através do sangue. Então apesar da informação que vem das gônadas, a sua identidade é definida autonomamente.
Para confirmar essa hipótese, estes autores fizeram o transplante de células que dariam origem às gônadas de um macho para o ovário em desenvolvimento de uma fêmea e vice-versa (assim como os controles que eram transplantes entre animais de mesmo sexo). O que eles observaram foi que progenitores de gônada de um macho quando integrados a um ovário não expressam moléculas típicas de uma célula de ovário assim como progenitores de ovário não expressam moléculas típicas de testículos neste tecido. Assim, mesmo quando as células são transplantadas antes de haver a diferenciação das gônadas e liberação dos hormônios estas já sabem qual é o seu sexo. Em mamíferos, este mesmo experimento dá origem a células transplantadas que expressam moléculas de acordo com a identidade sexual da gônada hospedeira.
E será que este é um mecanismo exclusivo de galinhas? Qual será a regra entre os vertebrados, a das galinhas ou a dos mamíferos? Ainda falta observar com mais calma representantes dos diversos grupos mas vou dar meu chute aqui com o pouco que está descrito. Este não parece ser um mecanismo exclusivo de galinhas e sim parece abranger todas as aves. O dentilhão zebra é um animal muito estudado pelas bases neurais do comportamento de canto que, como vocês sabem, é exclusivo dos machos desta espécie. Pois é, acontece que machos castrados desenvolvem os núcleos do cérebro necessários para o canto e cantam normalmente. E fêmeas que tem o desenvolvimento de testículos induzidos artificialmente não desenvolvem estes núcleos e não cantam. Assim, também para as células cerebrais dos dentilhões zebra o mais importante é a sua identidade autônoma, sugerindo que eles utilizam o mesmo mecanismo das galinhas.
Mamíferos e aves são membros de um mesmo grupo chamado amniota. Estes são aqueles vertebrados que criaram uma membrana, a membrana amniótica, ao redor dos seus embriões que possibilitou o seu desenvolvimento sem que precisem estar mergulhados na água. Então aves e mamíferos possuem um ancestral comum que se parecia mais com um réptil que colocava ovos. Os primeiros mamíferos foram animais que colocavam ovos, como o ornitorrinco o faz até hoje. A partir daí apareceram uns animais que não colocavam mais ovos mas os seus embriões migravam para uma bolsa aonde continuavam seu desenvolvimento ligados a glândula de leite. Estes são os marsupiais, como os cangurus e os nossos gambás. Alguns mamíferos ainda inventaram uma outra membrana chamada placentária que envolve o embrião por mais tempo e permite a difusão de nutrientes da mãe para o embrião através do sangue. Estes são os mamíferos que ficam grávidos (ou grávidas), como os humanos. Então, os mamíferos marsupiais podem ser considerados em diversas características como ancestrais dos mamíferos placentários (claro que eles também fizeram suas invenções depois). Nos marsupiais o desenvolvimento de um saco escrotal ou de um marsúpio (a bolsa) acontece antes do desenvolvimento das gônadas e qualquer liberação de hormônios sexuais. Essa decisão ocorre de acordo com a dosagem de cromossomos X. Aqueles animais com dois X desenvolvem uma bolsa e aqueles com um X desenvolvem um escroto. Assim, as células do marsupial que tem que decidir entre estas duas estruturas não estão muito interessadas na decisão da gônada. E o meu chute é que o regime ditatorial das gônadas sobre as outras células é uma invenção de mamíferos placentários.
Vale lembrar que os hormônios continuam tendo funções na maturação sexual destes animais. Eles são importantes sinalizadores do estado das gônadas para o resto do corpo. O importante é que a identidade sexual de cada célula é adquirida de forma diferente em galinhas e em nós mamíferos placentários.
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