terça-feira, 31 de maio de 2011

Com que roupa eu vou?

“…Com que roupa que eu vou

Pro samba que você me convidou?
Eu hoje estou pulando como sapo

Pra ver se escapo desta praga de urubu…”
(Noel Rosa)

Nós sabemos que os organismos tem diversas modificações que são selecionadas pelo ambiente onde vivem. Mas quando o ambiente varia drasticamente regularmente estes podem ter diversos caminhos de desenvolvimento selecionados que são disparados nas diferentes situações, os chamados polifenismos. Para ilustrar esse fenômeno, escolhi falar das larvas de anfíbios que apresentam diversas alterações no seu desenvolvimento induzidas pelo ambiente. Os embriões de salamandras de Hynobius retardatus podem ou não dar origem a um girino com uma cabeça maior que as facilita para terem hábitos carnívoros (vejam na foto ai em cima o girino da direita). E esse Noel Rosa dos anfíbios muda de roupa de acordo com o samba. Acontece que os girinos desta espécie vivem em poças aonde estão outros girinos de outros anfíbios além de seus co-específicos. Quando a densidade destes girinos aumenta, seja por mais animais ou por menos água na poça, os embriões de H retardatus geram mais girinos carnívoros, canibais inclusive. Mas como os embriões sentem a densidade populacional ao redor? Michimae e colaboradores (2005) mostraram que a vibração das nadadeiras dos girinos ao redor dos embriões induz a formação de girinos cabeçudos carnívoros. E esse fenótipo pode ser induzido inclusive com o bater de nadadeiras falsas feitas de vinil. Assim, da mesma maneira que os fenótipos nesta espécie foram selecionados, também a sensibilidade a alterações ambientais sofreu seleção.

Essa coisa de mudar a cabeça é pra quando a festa tá boa mas às vezes a coisa pode ficar feia pro lado dos girinos dessa salamandra. Acontece que lá no Japão, nas poças aonde estes caras ficam, também tem uma larva de libélula que acha esses girinos bem apetitosos. Mas o grande lance é que as larvas de libélula tão do lado de fora d’água e ai quando tem muitas destas predadoras por perto os embriões desenvolvem brânquias maiores (vejam na foto o embrião da esquerda que foi criado na presenca de larvas de libélula) que possibilitam que estes malandros fiquem mais distantes da superfície e aguentem um ambiente com menos oxigênio (Iwami e colaboradores, 2007).

Já os girinos da rã Rana Pirica são a base da cadeia alimentar. Isso é, são comidos pelas larvas de libélula e pelos girinos de salamandra. Mas esses caras também desenvolvem um corpo mais fortinho na presença dos girinos de salamandra que evitam que estas os engulam, apesar de não conseguirem evitar serem engolidos pelas larvas de libélula. Ai acontece que o Japão é na verdade um arquipélago. Na ilha principal esses pobres girinos tem que se virar quando tem muito predador e desenvolvem esse corpo mais gordinho. E quando os girinos de salamandra desenvolvem o fenótipo cabeçudo carnívoro ai que os girinos de rã desenvolvem corpos mais gordinhos para evitar serem engolidos (Kishida e colaboradores, 2006). Mas então acontece que uma das ilhas japonesas, Okushiri, não tem salamandras! Essa ilha se separou da ilha principal, Hokkaido, a algumas dezenas de milhares de anos e só carregou as rãs. E ai? Será que depois de tanto tempo de moleza os embriões de rã conseguem mudar seus caminhos de desenvolvimento na presença dos girinos de salamandra? Pois é, os girinos de Rana Pirica que não viam girinos de salamandras há tempos ainda fazem corpos mais gordinhos quando se deparam com as tais mas nem de perto ficam tão gordinhos quanto os da ilha principal (Kishida e colaboradores, 2007). Mas mesmo assim é interessante que este possível fenótipo continue lá escondido durante todo este tempo refletindo a historia da população.

Vale lembrar que estas alterações são ativadas por gatilhos de desenvolvimento que foram selecionados e não de forma consciente porque os bichos quiseram ficar assim. Muito pouco se sabe sobre como embriões traduzem sinais em forma de vibrações em caminhos de desenvolvimento efetivos. Mas a falta deste conhecimento é uma boa demonstração de que não prestamos muita atenção na influência do ambiente sobre o produto do desenvolvimento dos organismos.

Leitura recomendada:

Existe um livro texto publicado recentemente com uma ótima discussão sobre polifenismos e suas consequências para a evolução, biologia da conservação etc. Chama-se "Ecological developmental biology" e tem como autores Scott Gilbert e David Epel.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Conrad Waddington e a herança de caracteres adquiridos


No século passado, um movimento de cientistas uniu as idéias provenientes dos trabalhos de Mendel, que mostravam o padrão de herança dos alelos na determinação do fenótipo, e da teoria da seleção natural de Darwin. Então, segundo esta que foi chamada de síntese neo-darwinista (ou síntese moderna), alterações nos alelos gerariam modificações nos organismos que então passaraim pelos mecanismos de seleção. Com o passar dos anos e o avanço nos conhecimentos de genética, os genes passaram a ser o centro deste universo e as mutações nas suas sequências a ser a grande força geradora de diversidade dos organismos. A dedicação destes cientistas para difundir estas idéias foi muito importante para a aceitação que temos hoje em dia sobre a teoria evolutiva. Mas como toda teoria esta também possuia seus furos que foram percebidos ao longo da história e ignorados gracas ao poder de convencimento da infalibilidade da teoria. Um dos furos é o fenômeno de canalização proposto por Conrad Waddington em 1942 (esse cara aqui em cima, cheio de marra, mas ele podia)

Vou resumir aqui o que o Waddington falou mas sugiro fortemente a leitura do artigo original que vocês podem encontrar de graça aqui. O Waddington observou que algumas características não podem ter a sua origem explicada pela seleção de mutações que apareceram ao acaso. Como exemplo, ele utilizou o avestruz. Acontece que o avestruz possui diversos calos pelo corpo nos pontos em que ele usa de apoio quando esta descansando, como um no peito cobrindo o externo. Segundo a teoria neodarwinista, este animal foi selecionado de maneira que sua pele responde ao atrito gerado engrossando. Mas o problema é que os embriões de avestruz já possuem este calo dentro do ovo. Este seria um caso em que uma característica apareceu claramente graças a um estímulo ambiental mas com o passar das gerações teve o seu desenvolvimento selecionado para acontecer independente do estímulo. A este fenômeno ele deu o nome de canalização. Então, canalização é o mecanismo utilizado pelos organismos que garante que um caminho de desenvolvimento seja seguido independente de variações ambientais. Uns anos mais tarde, o próprio Waddington mostrou isso acontecendo. Ele pegou as moscas-de-fruta Drosophila melanogaster e comecou a induzir defeitos nas veias das suas asas através de um choque térmico nos embriões. Então ele comecou a cruzar essas moscas defeituosas entre si simulando uma seleção desta caracetrística. Depois de algumas gerações de cruzamentos, ele observou que mesmo sem dar o choque térmico as mosquinhas nasciam com os defeitos. E isso aconteceu em mais de uma mosquinha de uma vez. Lembrem-se que se por acaso esse fenômeno fosse dependente de uma mutação este ocorreria em uma só mosquinha. Mas não, o Waddington conseguiu mudar o desenvolvimento que estava canalizado para veias normais para veias defeituosas em boa parte de uma geração. O caminho que levava ao desenvolvimento deste defeito estava lá escondido na população. Estes animais estavam canalizados para desenvolver as veias mesmo com uma certa variação de temperatura e a variação genética da população. Mas quando ele deu o choque térmico ele conseguiu quebrar esse tamponamento e após algumas gerações canalizar o desenvolvimento para outro caminho. Então, houve a aquisição de uma informação ambiental que foi assimilada por esta população e herdada pelos seus descendentes. O Waddington chamou de assimilação genética a aquisição deste fenótipo induzido inicialmente pelo ambiente.

Eu vou falar em outros posts sobre mecanismos moleculares de herança de caracteres adquiridos. Na verdade eu falei disso nesse post aqui mas existem outros mecanismos interessantes pra discutir.

Leitura sugerida:

O artigo em que o Waddington mostrou a assimilação genética:
http://www.jstor.org/stable/2405747

Esse artigo vocês vão ter que pagar pra baixar mas tem uma boa discussão feita pelo Waddington aqui, e de graça.