quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O que a obesidade do seu pai tem a ver com a sua saúde?


Nós já vimos aqui no blog que a obesidade da mãe influencia a composição da flora intestinal da prole. E esta composição influencia o aparecimento de obesidade nestes filhotes (veja aqui). Mas e o pai? Os pais são necessários na hora de fazer os filhotes mas na maioria das espécies de animais estes nem tem contato com a sua prole. Então a princípio não interessa para uma pessoa se a sua mãe transou com um cara que não se liga em fazer exercícios e se amarra em uma comidinha gordurosa. De acordo com a teoria de herança Mendeliana o importante é a composição dos genes que estavam ali naquele espermatozóide que fertilizou o óvulo. Mas um estudo recente veio para colocar esta idéia em cheque.

O que Ng e colaboradores viram (2010; é assim mesmo que escreve o nome do autor. Não esqueci nenhuma vogal) foi que, em camundongos, se o pai for alimentado com uma dieta com altos nívies de gordura, as filhas desenvolvem uma forma de diabetes, mesmo comendo uma dieta equilibrada. Quando elas são submetidas a um teste de resposta ao aumento de glicose, seus níveis deste açucar sobem mais e a secreção de insulina é debilitada. Essas fêmeas apresentam uma redução no número de células ß, que são células do pâncreas responsáveis pela produção de insulina. Além disso elas possuem a expressão de 77 genes alterada. Muito provavelmente por mecanismos de alteração da conformação da cromatina como a metilação do DNA (boiou? Nesse outro texto aqui eu discuto melhor como a cromatina é importante na influência do ambiente sobre a expressão gênica).

Essa é a primeira demonstração de herança de caracteres adquiridos pelo pai em mamíferos. O Lamarck deve estar se divertindo lá de cima. Mas esse trabalho deixa algumas dúvidas. Porque somente as filhas herdam este defeito? Será que as próximas gerações também são afetadas? Esta última informação é importante para sabermos o quanto este mecanismo pode ser importante para a evolução.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Parto sincronizado



Quem já conviveu com grupos de mulheres que frequentam um mesmo grupo social sabe que existe uma tendência destas sincronizarem os seus ciclos hormonais. Não se sabe bem porque isso acontece mas existe uma hipótese de que se elas tiverem filhos em uma mesma época isso seria melhor para as crianças por elas cooperarem na criação desta geração. Assim, existe um substrato para que a seleção natural atue sobre aquelas mulheres mais sensíveis a sincronizar o seu ciclo com o de outras. Mas por mais que elas sincronizem os seus ciclos e seus bebês sejam concebidos em um mesmo par de dias, nós sabemos que é muito improvável que os partos sejam na mesma noite.

Mas para as fêmeas de suricatos de Uganda (Mungos mungo) isso acontece. Hodge e colaboradores (2010), observaram que 64% das fêmeas desta espécie dão a luz aos seus filhotes na mesma noite. Então eles também procuraram saber qual seria a pressão seletiva que levaria à tamanha sincronia. Como existem ainda os outros 36% de filhotes que nascem ou antes ou depois da tal noite, eles observaram que filhotes que nascem antes sofrem maior infanticídio e filhotes que nascem depois tem pior ganho de peso. Isso é, aqueles que nascem na tal noite entram no bolo e não são mortos porque as mães ficam na dúvida se estão matando sua própria cria. Já os que nascem depois morrem mais por serem menores e perderem a competição por recursos.

Ia ser legal investigar qual é o mecanismo utilizado para tal sincronia. Será que sincronizar a data da fertilização é suficiente? Ou sera que também é possível acelerar ou retardar o desenvolvimento do embrião e as reações fisiológicas maternas que acontecem antes do parto?

domingo, 30 de maio de 2010

Se plantar transgênicos o gene fica ali?


No Brasil e no mundo cresce o cultivo de plantas transgênicas, aquelas que tiveram genes introduzidos por engenharia genética. Em teoria, o uso destas plantas é aprovado após analisadas mudanças nas substâncias que elas produzem. A intenção é saber se estas podem causar mal àqueles que a consomem. Porém, um novo trabalho que mostra a transferência genética entre espécies de planta traz uma nova crítica. Nós não sabemos onde o gene introduzido vai parar.

Plantas transgênicas são todas aquelas que tiveram material genético não pertecente à sua espécie introduzidos ao seu DNA. Este novo material genético geralmente contém um ou mais genes que melhoram a sua produtividade. Este gene pode aumentar um hormônio vegetal que está envolvido no acúmulo de nutrientes, por exemplo, e os tomates ficarem mais gordinhos. Mas a maioria das linhagens cultivadas hoje em dia receberam genes envolvidos com a resistência ao uso de herbicidas. Assim, os fazendeiros podem utilizar mais destas drogas sem matar as plantas que eles querem produzir. Mas quando pensamos nos genes dentro de um organismo, como nós, geralmente pensamos que estes são propriedade dele náo é? Nós não pensamos que nossos genes vão sair passeando por ai.

Só que não é bem assim. Quando comemos um alface, os genes daquele alface vão parar também no nosso intestino. E se de alguma maneira os genes do alface entrarem em uma célula do seu intestino? Na relação com microrganismos e vírus a coisa fica ainda mais promíscua. Estes vivem entrando em células por ai e com certeza trocam muito material genético nestes processos. Mas o que Yoshida e colaboradores mostraram num artigo publicado esta semana na Science foi que plantas trocam genes entre si. Assim, nós não podemos garantir que os genes introduzidos por nós em cultivos não vão parar em espécies da natureza. Esses caras estudaram uma planta parasita, S. hermonthica, que ataca algumas plantas cultivadas, como o arroz (olha lá em cima a planta roxa atacando uma plantação de milho). Daí eles procuraram por sequências genéticas típicas do grupo ao qual esses cultivares pertencem (mas não S. Hermonthica), as monocotiledôneas. E foi batata. Opa, bem, não exatamente batata. Eles encontraram um gene de monocotiledônea na S. Hermonthica, que é uma dicotiledônea.
Agora imaginem se uma planta parasita dessa rouba justamente o gene de resistência a herbicidas. Vai virar um super parasita que não morre com herbicida. É primordial agora saber o quanto essas transferências são frequentes.

A liberação do cultivo de transgêncios no Brasil é centralizada pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança, CTNBio. Ao meu ver, esta aprovação deveria ser melhor discutida com outras entidades, como o IBAMA, a EMBRAPA e a comunidade acadêmica. A lei de biossegurança contém também a regulação sobre o uso de células tronco. Uma bizarrice. O uso de transgênicos em cultivos vegetais merece uma discussão separada. A falta de discussão sobre assuntos de tal importância sempre gera erros em tomadas de decisão. O cultivo de soja no Brasil, por exemplo, tem a caracetrística de ser feito muito próximo a grandes áreas protegidas (que muitas vezes são até derrubadas pra dar lugar ao cultivo). Qual será o impacto da troca de genes entre a soja transgênica e espécies nativas? Até agora ninguém sabe.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Porque lamarckista? Parte 1: Linnaeus e o fixismo


Vocês devem estar se perguntando porque esse cara chega, cria um blog pra falar um bando de coisas doidas de biologia, diz que é lamarckista e nem explica porque. Então resolvi escrever uma série de textos sobre a história do pensamento evolutivo pra tentar chegar ao porque da idéia de que o Lamarck estava errado e se contrapunha a teoria de Darwin, interpretações erradas ao meu ver. Nesse primeiro vou tentar descrever como era a situação antes do Lamarck publicar o “Philosophie zoologique” em 1809.

Eu não sei quanto a vocês, mas eu sempre achei que antes da idéia de evolução a tradição bíblica havia induzido ao pensamento de que as espécies foram todas criadas de uma vez só e que eram entidades fixas (não mudam). Pois é, mas acontece que até o século 18 os conceitos de geração espontânea e transmutação eram incrivelmente bem aceitos. Nos séculos 16 e 17 era comum encontrar relatos como os que diziam que a girafa era o produto do cruzamento de camelos e leopardos. Santo Agostinho assumia que as espécies não deveriam ter sido criadas durante os seis dias do "Gênese". Durante este período somente um potencial se formaria e as formas apareceriam muito depois. Autoridades do clero, como Albert the Great, acreditavam que deus havia conferido poderes aos elementos, como a terra e as águas. Estes teriam então gerado as diversas formas de vida em tempos diferentes. E essas formas eram capazes de reproduzir-se. Santo Tomás de Aquino admitiu que “...novas espécies de animais são produzidas por putrefação, pela força que as estrelas e os elementos receberam no início. Novamente, animais de novos tipos aparecem ocasionalmente da conexão de indivíduos pertencentes a diferentes espécies...”

Então pensem bem, imagina desenvolver uma teoria evolutiva no meio dessa bagunça onde as espécies se transformavam em outras, cruzavam entre si formando híbridos e eram geradas de matéria inanimada. Impossível. Então a descoberta do fixismo das espécies no meio do século 18 representou uma novidade. Só depois que este conceito foi aceito pelos naturalistas este também foi incorporado como uma interpretação literária da bíblia pelo clero.

Dentre as observações de transmutações estavam as que plantas quando mudadas de ambiente se transformavam em plantas completamente diferentes morfologicamente. Este fenômeno acontece mesmo. Existem diversas espécies de Mata Atlântica, por exemplo, que conseguem se estabelecer em restinga ou mangue. Mas para isso passam por diversas modificações morfológicas. O que o Linnaeus e outros fizeram no século 18 foi realizar transplante e re-transplante de plantas entre ambientes para mostrar que estas não estavam se tornando outras espécies. Então, o fixismo era não só uma novidade como também um progresso cientifico!

O Linnaeus também foi importante por ter gerado o primeiro sistema de classificação dos seres vivos, o sistema binomial. Inclusive o nome de nossa espécie, Homo sapiens, foi por ele dado. Este sistema já utilizava a classificação de grupos maiores e menores, reino, classe, ordem gênero e espécie. Houveram outros sistemas antes mas o interessante do Sistema Natural, como o Linnaeus o batizou, foi ser o primeiro não antropocêntrico. Assim, nós fomos classificados neste sistema assim como qualquer outra espécie. A classificação que utilizamos hoje é fruto de releituras do Sistema Natural do Linnaeus.

O próprio Linnaeus assumia que os critérios para classificação que ele usava eram artificiais, não refletiam uma relação real entre os organismos. O Linnaeus era criacionista, acreditava no design inteligente das espécies por um deus. Quem sacou a relação genealógica entre os organismos foi o Lamarck. Aqui está, então, a primeira razão porque todos nós somos lamarckistas. No próximo texto eu vou me deter mais ao que o Lamarck disse.

Fontes:
Amundson R (2005) The changing role of the embryo in the evolutionary thought. Cambridge University Press.

Gould S.J.(1995) Dinossauro no Palheiro. Companhia das Letras.
Em especial o capitulo “Linnaeus e o avô de Darwin”

Zirkle C. (1959) Species before Darwin. Prooced. Am. Philos. Soc. 103:636-644.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Você é o que dá pra sua flora intestinal de comer


Esse título é uma óbvia referência ao dito popular que diz que você é o que você come. Então vou começar esse texto refletindo sobre o que somos nós. Nosso corpo é o produto da fusão de um gameta de cada um de nossos pais. Essa célula fusionada tem o incrível poder de se multiplicar e se desenvolver nesse corpo que nós temos hoje. Mas assim que deixamos o ambiente estéril da membrana placentária, zilhões de microorganismos encontram nas milhares de curvas do seu corpitcho um interessante nicho ecológico. Mas então? O quanto esses microorganismos são importantes para o produto final que é o nosso corpo? Para simplificar, vou me deter a uma população, a das bactérias que vivem em seu intestino.

As primeiras bactérias a colonizarem o seu intestino vem dos primeiros líquidos que você ingere (fórmula, ou leite materno ou leite de seja lá quem te amamentou). No leite materno, além de haverem muitos nutrientes estão também anticorpos que servem como uma imunidade adquirida para o bebê. Existem diversos estudos clínicos que mostram que estes primeiros eventos, como o parto (normal ou cesariana) e o tipo de amamentação influem na composição da microbiota dos adultos (que espécies estão e em que abundância). Essa idéia foi diretamente testada por Diaz e colaboradores (2004) que observaram que filhotes de mães com deficiencia na produção de anticorpos desenvolvem diferentes abundâncias de espécies de bactérias intestinais. Espécies pioneiras são importantes porque uma vez que elas chegam a um ambiente elas o modificam, e isso determina se as espécies que virão depois serão capazes de se estabelecer. Mas isso não significa que estes primeiros eventos são determinantes, e sim instrutivos, para a composição final.

Então vamos lá, será que oque você come altera a composição de bactérias do seu intestino? Ley e colaboradores (2006) compararam a flora de indivíduos normais e obesos e observaram que os obesos possuem uma alta na proporção de bactérias do tipo Firmicutes e que se perderem peso após uma ano esta proporção baixa novamente. Mas então vem a pergunta, o aumento de Firmicutes foi causado pela obesidade ou ele por si ajudou no aumento do peso destes indivíduos? Bom, esse mesmo grupo mostrou também que este aumento de Firmicutes acontece em camundongos obesos (Turnbaugh e colaboradores 2006). Então eles pegaram um camundongo que estava livre de microorganismos e inocularam bactérias do intestino de um camundongo obeso ou de um normal. Aqueles camundongos que tiveram bactérias de obesos inoculadas engordaram mais. Mais recentemente, Vijay-Kumar e colaboradores (2010) mostraram que camundongos mutantes para uma proteína importante para o sistema immune (o receptor semelhante a Toll 5) desenvolvem diversos sintomas de obesidade como hipertenção, hiperfagia (comer muito) e excesso de gordura. E muitos destes sintomas foram reproduzidos em camundongos normais que receberam a inoculação de bactérias do intestino destes animais. Assim, existe um balanço na comunidade de bactérias do nosso sistema digestivo que é influenciado pelo nosso sistema immune. Alterações nesta composição levam a um desbequilíbrio em nosso metabolismo e, o que me chama mais atenção, a uma modificação em nosso comportamento, no caso a hiperfagia.

A dependência do nosso sitema immune em relação à nossa microbiota não para por ai. Associada ao nosso intestino existe uma grande rede de tecido linfático, o GALT. Este tecido é importante pois os linfócitos precisam ir até lá para passarem por sua maturação final, onde começam a produzir os diferentes anticorpos. Acontece que as bactérias do nosso intestino são necessárias para o desenvolvimento do GALT. Isso é, sem as bactérias os nossos linfócitos não teriam aonde maturar e nós teríamos uma imunodeficiência semelhante à AIDS (ou até pior pois o GALT possui algumas outras funções). E Rhee e colaboradores (2004), mostraram que nenhuma das espécies encontradas no intestino do coelho é por si só suficiente para induzir o desenvolvimento do GALT. Somente a combinação entre algumas espécies induz. Assim, o desenvolvimento do nosso corpo de Homo sapiens não se completa sem nossos microorganismos moradores.

Bom, nós já vimos que nós influenciamos o balanço ecológico da nossa microbiota intestinal com nossos hábitos alimentares. Vimos também que a nossa microbiota influi no nosso metabolismo e comportamento alimentar. E que sem ela o nosso corpo não se desenvolve completamente. Mas o que Hehemann e colaboradores (2010) mostraram é que esta relação é muito mais interessante. Nós sempre ouvimos dizer que nós não digerimos muito bem as folhas que comemos por não possuirmos as enzimas, coisa e tal. A população do Japão então, que come muito frutos do mar, come aquela alga do Sushi só pra enfeitar mesmo não é? Não, acontece que estes caras mostraram que as bactérias do intestino de grande parte da população japonesa “roubou” os genes para digerir polissacarídeos de alga encontarados em bactérias marinhas. Assim, a cultura e os hábitos alimentares de um povo moldaram a microbiota para um melhor aproveitamento calórico daquele alimento mais comumente consumido. Isso tem diversas implicações como por exemplo a influência de tais eventos de transferência lateral de informação na evolução de hábitos alimentares, como a herbivoria.

No fim, vimos que esse corpo que você diz ser seu é um produto de todos os genomas de quem o habita, de como vocês percebem o ambiente e se comportam nele, e da história da sua relação. É hora também de pararmos de pensar na evolução como um processo interno. Nós não somos produtos somente da seleção de mutações. Todas estas coisas enumeradas acima podem trazer novidades que podem ser herdadas.

quarta-feira, 31 de março de 2010

O mistério da flutuação de populações de linces e lebres: Ponto pro Lamarck


Bom, lá vai a minha veia lamarckista pulsando de novo. Existe uma história muito contada nos livros de ecologia que é a relação entre populações de linces e lebres. Lebres, como todos sabem, são animais que gostam muito de se reproduzir e o fazem muito rápido. Assim, em épocas em que os linces não são muitos, a população de lebres aumenta (claro que dependendo de outras coisas como a oferta de comida). Mas ai então, os linces tem esse aumento na sua oferta de comida (as lebres) e começam também a reproduzir. Quando a população de linces então aumenta, por consequência a população de lebres diminui, por mais das pobres serem devoradas. Só que ai então chega um momento em que os linces comeram demais e sua população entra em colapso tendendo a diminuir. E ai, por reproduzirem mais rápido, a tendência seria que a população de lebres se recupere por falta de predação.

Mas não acontece bem assim. Existe uma fase, logo após o declínio dos linces, em que as lebres não reproduzem muito e continuam a cair mesmo com abundância de alimentos. Esse é um mistério que há muito tempo intriga os ecólogos. Eu lembro de certa vez ver uma palestra no congresso de ecologia explicando que esse comportamento imprevisível das lebres se deve a um comportamento caótico de sua população. Mas bom, colocar a teoria do caos no meio e só uma forma elegante de dizer que não faz a menor idéia do que tá rolando (para uma boa discussão sobre isso veja o capítulo "The end of Natural history?" no "Biology under the influence" de Lewontin e Levins, já vi uma tradução pelas livrarias).

Mas e ai? Oque que tá rolando com as lebres após o sumiço dos linces? Bom, acontece que as lebres gostam de sentir um clima na hora de reproduzir. Se elas estão estressadas elas não reproduzem muito. E se tem uma coisa que deixa elas estressadas é esse tal de lince. Mas se a população de lince entrou em declínio e tá cheio de comida, porque elas continuam estressadas? Ai entra a já famosa herança do comportamento maternal. Eu vou falar muito rapidinho agora porque eu já falei sobre isso neste blog (não lembra? Olhe aqui). Acontece que os comportamentos de stress e maternal são dependentes dos níveis de glicocorticóides no sangue. E os níveis de receptor de glicocorticóides que você expressa no seu cérebro são dependentes de se você foi bem cuidado pela sua mãe ou não. Isso é, fillhos de mães cuidadosas expressam bastante deste receptor, são menos estressados e as filhas cuidam bem de seus filhos. E o contrário vale pros filhos de mães estressadas. Sheriff e colaboradores (2010) publicaram um artigo mostrando que os níveis de corticóides nas fezes da prole (que são reflexo dos níveis do sangue)que nasceu numa época de poucos linces continua alto por algum tempo. Justamente porque suas mães eram estressadas por terem vivido numa época com linces e cuidaram mal desses filhotes. Eles tambem fizeram testes em laboratório de estresse com filhotes de fêmeas capturadas grávidas. Eles viram então que os filhotes dessas fêmeas que viveram com linces mantinham o resposta acentuada ao estresse. Assim, essas fêmeas herdaram uma informação ambiental vivida por seus antepassados que lhes foi transmitida independentemente dos genes que ela herdou através dos gametas dos seus pais.

Essa e uma confiramação que a heranca de informação ambiental pode ocorrer em populações naturais. Porém é necessário que o acompanhamento desta população seja feito por mais tempo para observar a perpetuação desta informação na população. Esses dados implicam na possibilidade de que tal forma de herança é uma possível fonte de novidade fenotípica e pode ser o gatilho para um evento de especiação.

sexta-feira, 12 de março de 2010

A anarquia celular na escolha de sexo das galinhas


Quando estamos na escola aprendemos que meninos são meninos porque tem um cromossomo Y e um cromossomo X. Já as meninas possuem dois cromossomos X e nenhum Y. Acontece que um gene presente nos cromossomos Y, o Sry, ativa a diferenciação das gônadas em testículos. Mas nem todas as diferenças entre homens e mulheres estão nas gônadas. Oque acontece é que estes órgãos produzem hormônios que sinalizam para as outras células qual é o sexo escolhido. Então para uma célula de fora do testículo do homem como uma célula muscular, por exemplo, tanto faz se ela possui o cromossomo Y ou não. A decisão é da ditadora gônada que só informa aos seus súditos qual é o sexo escolhido. Outra consequência disto é que se, por algum balanço diferente de hormônios, um menino produzir muita progesterona, as células que formam o seu peito vão fazer um peitinho mais “feminino”. Assim como meninas com muita testosterona crescem pelos nos bigodes, independente da composição cromossômica das células acima dos seus lábios.

Os organismos com dimorfismo sexual, isso é, com machos diferentes de fêmeas, definem o sexo de duas formas. Ou por mecanismos genéticos, como nós, ou por mecanismos ambientais. As tartarugas, por exemplo, tem o seu sexo definido pela temperatura em que os ovos são incubados. As fêmeas são geradas em temperaturas mais altas e os machos nas mais baixas. No buraco na areia onde a mãe coloca seus ovos, os machos são gerados na periferia enquanto as fêmeas são aqueles ovos que ficam no meio sem tocar na areia fria. Mas independente de como o sexo é definido, se genético ou ambiental, até agora acreditava-se que todas as células viviam sob a ditadura das gônadas. Mas ai então chegaram as galinhas para contrariar.

Antes de contar como as galinhas contrariaram o regime de governo celular vamos entender oque são ginandromorfos. Os ginandromorfos são organismos que por alguma razão apresentam características dos dois sexos. Isso pode acontecer por diversas razões. Uma delas é a má distribuição de cromossomos na hora da divisão celular. Quando uma célula vai se dividir, ela dobra o seu numero de cromossomos e pareia aqueles que são iguais para que na hora da divisão cada um vá para um lado. Só que podem haver erros. A síndrome de Down é um exemplo em que na geração dos gametas os dois cromossomos 21 foram para uma só célula. Esse gameta, depois de fusionado com o outro, acabou por gerar um bebê com três cromossomos 21 em cada célula. Agora imaginem um embrião que está fazendo sua primeira divisão celular para ficar com duas células. Se os dois cromossomos Y forem para só um lado, este terá uma célula com a informação para fazer meninos e outra que não tem. Assim, metade do corpo vai ter a informação e metade não. Mas tudo bem, porque um dos testículos deste menino vai ser gerado e produzir testosterona pra informar o resto do corpo o que fazer.

As galinhas também tem o sexo determinado por cromossomos sexuais. Os machos possuem dois cromossomos Z e as fêmeas possuem um cromossomo Z e um W. Só que então, Zhao e colaboradores observaram que existe uma ocorrência rara de galinhas que apresentam metade do corpo masculino e metade feminino. Olhem na foto lá em cima. Nesta galinha a plumagem branca é exclusiva de galos e o lado branco é mais fortão. Eles mostraram que o lado branco tem mais células ZZ e que o lado marrom possui mais células ZW. Mas lembrem-se, estas células estão recebendo os mesmos hormônios através do sangue. Então apesar da informação que vem das gônadas, a sua identidade é definida autonomamente.

Para confirmar essa hipótese, estes autores fizeram o transplante de células que dariam origem às gônadas de um macho para o ovário em desenvolvimento de uma fêmea e vice-versa (assim como os controles que eram transplantes entre animais de mesmo sexo). O que eles observaram foi que progenitores de gônada de um macho quando integrados a um ovário não expressam moléculas típicas de uma célula de ovário assim como progenitores de ovário não expressam moléculas típicas de testículos neste tecido. Assim, mesmo quando as células são transplantadas antes de haver a diferenciação das gônadas e liberação dos hormônios estas já sabem qual é o seu sexo. Em mamíferos, este mesmo experimento dá origem a células transplantadas que expressam moléculas de acordo com a identidade sexual da gônada hospedeira.

E será que este é um mecanismo exclusivo de galinhas? Qual será a regra entre os vertebrados, a das galinhas ou a dos mamíferos? Ainda falta observar com mais calma representantes dos diversos grupos mas vou dar meu chute aqui com o pouco que está descrito. Este não parece ser um mecanismo exclusivo de galinhas e sim parece abranger todas as aves. O dentilhão zebra é um animal muito estudado pelas bases neurais do comportamento de canto que, como vocês sabem, é exclusivo dos machos desta espécie. Pois é, acontece que machos castrados desenvolvem os núcleos do cérebro necessários para o canto e cantam normalmente. E fêmeas que tem o desenvolvimento de testículos induzidos artificialmente não desenvolvem estes núcleos e não cantam. Assim, também para as células cerebrais dos dentilhões zebra o mais importante é a sua identidade autônoma, sugerindo que eles utilizam o mesmo mecanismo das galinhas.

Mamíferos e aves são membros de um mesmo grupo chamado amniota. Estes são aqueles vertebrados que criaram uma membrana, a membrana amniótica, ao redor dos seus embriões que possibilitou o seu desenvolvimento sem que precisem estar mergulhados na água. Então aves e mamíferos possuem um ancestral comum que se parecia mais com um réptil que colocava ovos. Os primeiros mamíferos foram animais que colocavam ovos, como o ornitorrinco o faz até hoje. A partir daí apareceram uns animais que não colocavam mais ovos mas os seus embriões migravam para uma bolsa aonde continuavam seu desenvolvimento ligados a glândula de leite. Estes são os marsupiais, como os cangurus e os nossos gambás. Alguns mamíferos ainda inventaram uma outra membrana chamada placentária que envolve o embrião por mais tempo e permite a difusão de nutrientes da mãe para o embrião através do sangue. Estes são os mamíferos que ficam grávidos (ou grávidas), como os humanos. Então, os mamíferos marsupiais podem ser considerados em diversas características como ancestrais dos mamíferos placentários (claro que eles também fizeram suas invenções depois). Nos marsupiais o desenvolvimento de um saco escrotal ou de um marsúpio (a bolsa) acontece antes do desenvolvimento das gônadas e qualquer liberação de hormônios sexuais. Essa decisão ocorre de acordo com a dosagem de cromossomos X. Aqueles animais com dois X desenvolvem uma bolsa e aqueles com um X desenvolvem um escroto. Assim, as células do marsupial que tem que decidir entre estas duas estruturas não estão muito interessadas na decisão da gônada. E o meu chute é que o regime ditatorial das gônadas sobre as outras células é uma invenção de mamíferos placentários.

Vale lembrar que os hormônios continuam tendo funções na maturação sexual destes animais. Eles são importantes sinalizadores do estado das gônadas para o resto do corpo. O importante é que a identidade sexual de cada célula é adquirida de forma diferente em galinhas e em nós mamíferos placentários.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Sereias existem? Pergunte às borboletas!



Se tem uma coisa que é sagrada em biologia é o fato de que espécies existem e são diferentes entre si. E elas são diferentes porque em algum momento na evolução pararam de cruzar entre si e trocar informações. A possibilidade de cruzamento entre espécies diferentes sempre esteve presente no nosso imaginário, o que é muito bem ilustrado nas mitologias com seres híbridos como as sereias ou o minotauro. Mas será que a fusão entre espécies é pura ficção? Um artigo recente publicado na Proocedings of the National Academy of Sciences trouxe de volta para a ciência a discussão sobre a possibilidade de ter ocorrido fusão entre espécies durante a evolução. E teve gente que não gostou nada.

Todos vocês que dedicaram um pouquinho da sua infância para observar a natureza sabem que as borboletas se desenvolvem de lagartas. As lagartas, após algum tempo de vida (geralmente bem maior que a vida da borboleta), criam um casulo onde fazem sua metamorfose em borboletas ou mariposas. Pois é, acontece que as borboletas, assim como todos os insetos, tem a característica de possuirem três pares de pernas que saem de seus segmentos toráxicos. Mas as lagartas das borboletas (chamadas de larvas) possuem não só patas nos segmentos toráxicos mas também nos segmentos abdominais. Então, esse sujeito lá em Liverpool chamado Donald Williamson publicou um artigo interessante propondo uma hipótese de que as larvas dos insetos seriam derivadas de um híbrido entre um inseto e um onicófora (olhe aqui em baixo as fotos de um onicófora, de uma lagarta e de uma borboleta). O onicófora sim possui patas no abdômen. Assim. durante a fase larval o lado onicófora se expressaria e quando adultos o lado inseto seria exposto.








Um problema deste artigo é que ele é puramente teórico. Então, as críticas são pesadas neste ponto. A galera chega pisando tipo “Como assim esse cara chega e publica um artigo com uma idéia estapafúrdia, pedindo pros outros fazerem um experimento enquanto eu tenho que ralar a barriga na bancada pra publicar o meu?” Eu não vejo nenhum problema na publicação de artigos teóricos enquanto as evidências não existem. Mas de fato, concordo que o Williamson não foi cuidadoso na hora de enumerar as previsões de sua hipótese e cometeu deslizes. Mas ao invés de derrubar a hipótese vou tentar corrigir aqui as previsões do Williamson.

Uma das previsões do Williamson foi a de que os insetos que possuem uma fase larval teriam genomas maiores que os de insetos que se desenvolvem direto (e que não seriam derivados do ancestral que fundiu com onicófora) e também que os de onicóforas. Esta previsao foi completamente derrubada por um artigo publicado na mesma edição da revista por Hart e Grosberg. Na verdade insetos que possuem fase larval parecem ter genomas até menores que estes outros dois grupos. Mas eu defendo a idéia aqui de que esta previsão do Williamson estava errada. Vamos imaginar aqui aquela célula (provavelmente um gameta) que foi fusionada (ou fertilizada) com uma célula de uma outra espécie. Bom, quando dois gametas da mesma espécie se fundem, eles possuem um número de cromossomos que são correspondentes aos cromossomos que vieram de cada gameta. Já no caso de uma fusão entre células de espécies diferentes a quantidade de cromossomos diferentes (que não possuem seu par) será grande principalmente se as espécies forem muito distantes. Durante a produção artificial de anticorpos é comum um passo em que duas células são fusionadas gerando uma célula 4n. Essa célula porém, não permanece com este genoma inflado e elimina (aparentemente aleatoriamente) metade do genoma até se tornar 2n. Então existe um mecanismo celular de regulação do tamanho do genoma que deve ter causadao a eliminação de boa parte do genoma gerado pela fusão entre espécies. Outro fato que o Williamson ignorou foi que oque os trabalhos de sequenciamento genômico mostram é que oa composição do genoma não é somente derivada da seleção natural sobre o fenótipo que eles ajudam a formar mas também da translocação de sequências de DNA que ficam saltando de um lado pro outro alterando a composição de cada cromossomo. Dessa promiscuidade intragenômica cromossomos de espécies diferentes podem ter compartilhado sequências antes da eliminação de cromossomos estranhos. Outra constatação importante é que o tamanho do genoma não tem relação com a complexidade do organismo. Assim, o tamanho do genoma de um animal gerado por fusão não é tão previsível.

Mas então, acho que apesar de salvar o Williamson dessa eu continuo não ajudando muito. Bom, o segredo é olhar para o desenvolvimento desses animais. Será que para desenvolver um fenótipo parecido com um onicófora a borboleta precisa de um genoma de onicófora inteiro? A resposta é não. Existe muita redundância nas funções de genes de desenvolvimento entre espécies. Um conceito importante aqui é o de homologia molecular (também chamada de homologia profunda). Se veterbrados terrestres possuem quatro patas, isso acontece porque todos derivaram de um ancestral comum que possuia quatro patas. Então podemos dizer que o nosso braço é homólogo à asa do morcego porque ambos derivaram da pata dianteira de um ancestral comum. E durante o desenvolvimento destas duas estruturas, genes homólogos foram expressos para regular este processo. Só que muitas vezes a homologia entre genes atravessa até mesmo grupos bem distantes onde a esturtura que regulam não está necessariamente em uma relação de homologia. Por exemplo, moscas tem olhos e nós também. Porém estes olhos surgiram independentemente na evolução. Os nossos olhos e os das moscas não são derivados dos olhos de um ancestral comum. Mas o gene que regula o desenvolvimento dos olhos de moscas e os nossos, chamado Pax6, é homólogo nas duas espécies. Isso pode ser provado comparando-se as sequências dos dois. E se expressarmos artificialmente o gene Pax6 de camundongos nas células que darão origem à mandíbula da mosca, estas células dão origem a um olho de mosca (veja na figura aqui ao lado). Logo, para gerar uma lagarta, o genoma da borboleta não precisaria de tantos genes de onicófora assim. Só daqueles que regulam o desenvolvimento de estruturas exclusivas de onicóforas, como as patas no abdômen.

Quais seriam então os genes cruciais?

Durante o desenvolvimento dos animais diversos eventos celulares e moleculares levam ao estabelecimento dos eixos corporais. Então, quando ainda somos embriões, alguns genes são expressos em locais específicos do corpo. Dentre estes estão uma classe de genes chamadas genes hox. Esses são genes que regulam a expressão de outros genes, chamados genes mestre. Por regularem a expressão de outros genes, os genes hox causam modificações muito grandes nas células que os expressam como dar identidade. Assim, células do abdômen sabem que são do abdômen porque expressam o gene hox do abdômen e amesma coisa acontece no tórax. Na mosca de fruta Drosophila melanogaster, um inseto, o gene hox Ultrabithorax (Ubx) é expresso no abdômen. Dentre as coisas que ele faz lá está a inibição do desenvolvimento das patas. Se induzirmos artificialmente a expressão desse gene no tórax, o desenvolvimento das patas é inibido. Já nas onicóforas, é esperado que os genes que regulam a identidade de abdomem não inibam o desenvolvimento de patas. Então, se formos pensar tem alguma coisa acontecendo com o Ubx de borboletas durante a fase larval que faz com que ele permita o desenvolvimento de patas no abdômem. E de fato, se expressarmos artificialmente o gene Ubx de uma onicófora no tórax de uma mosca, esse falha em dar certas características abdominais (dentre elas a ausência de patas). Galant e Carrol (2000) foram mais longe ainda e identificaram qual é a partezinha do Ubx de moscas que falta em Ubx de onicóforas para induzir a identidade abdominal. Fizeram uma proteína mista que era quase toda o Ubx de onicóforas com uma ponta do Ubx de moscas e induziram a expressão no tórax de moscas. Essa proteína sim induziu a identidade de abdômen. Então se tem um candidato a estar com a expressão complicada na larva da borboleta esse é o Ubx, mais especificamente nessa pontinha que as onicóforas não tem.

Mas apesar de não terem testado especificamente a atividade de Ubx de borboletas, Galant e Carrol seqüenciaram o gene e este possui a tal pontinha. Eles até testaram a atividade do Ubx de besouros mas assim como as larvas de moscas, as larvas de besouro não tem patas no abdômen (as larvas de besouros tem seis patas no tórax, como os adultos, e as de moscas não possuem patas). Então o que acontece com o Ubx de borboletas durante o desenvolvimento das lagartas continua um mistério. É possível que elas também possuam um segundo gene derivado da fusão com onicóforas? Sinceramente não sei se ao seqüenciar o gene esses autores podem ter perdido o segundo. Mas outros mecanismos de regulação, como a edição do RNA mensageiro já feito (“splicing” alternativo) me parecem mais prováveis.

Mas e o cruzamento entre espécies? Os organismos criaram múltiplos mecanismos para que isso não ocorra. Estes vão desde moléculas de reconhecimento na superfície dos gametas até data marcada para liberação destes na água do mar. Mas desde que o sexo foi inventado os animais praticam sexo interespecífico. Imagina só, aquele fundo do mar no cambriano devia ser a maior suruba! E se tem uma coisa que os mecanismos biológicos são famosos é por falhar. Eu acho que a hipótese do Williamson deve ser levada a sério. Mas a esta falta um princípio básico, ser observada sob a luz da biologia do desenvolvimento.

Pros curiosos:

Essa sereia lá em cima foi feita por um artista chamado Walmor Corrêa, que brinca muito com essa coisa dos híbridos. O site dele vocês encontram aqui.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

O comportamento maternal imprime alterações no DNA da prole: A volta do Lamarckismo?



Este é um artigo que eu escrevi ano passado para uma revista de divulgacão científica. Na verdade esta é a versão sem cortes e com o título original. Aqui faco um apanhado de varias historias que me intrigam já a algum tempo e que juntei para discutir sobre a possibilidade de evolução independente das mutações genéticas.



Estamos no ano em que a publicação da “Origem das Espécies” completa 150 anos e o nascimento de seu autor, Charles Darwin, completa 200 anos. Outra importante contribuição para a forma como pensamos em biologia hoje em dia foi a elaboração da teoria de “Herança Cromossomal-Mendeliana” que descrevia mecanismos de herança de características segundo a relação dos diferentes alelos vindos dos dois pais. Essas duas teorias foram unidas por um movimento de cientistas chamado de “Síntese Neo-Darwinista”. Então, durante todo o século XX, a idéia de que os alelos levam ao fenótipo e que este pode ser alvo de seleção natural através da seleção dos mesmos dominou a forma como pensávamos em biologia. No entanto, alguns trabalhos recentes mostram que o comportamento maternal pode ser influenciado por mecanismos de herança independentes da seqüência do DNA, através da aquisição de informação ambiental. A idéia de aquisição de informação ambiental nos remete a uma teoria evolutiva ainda mais antiga, a teoria Lamarckista de 1809. Discuto aqui a possível volta da relevância desta teoria em uma visão moderna sobre a teoria evolutiva.

Antes da publicação da “Origem das espécies” prevalecia a idéia de que as espécies eram entidades fixas, não mudavam ao longo do tempo. Um dos primeiros a publicar uma outra visão sobre as espécies foi Jean Baptiste Lamarck, há 200 anos. Nessa primeira afirmação de que as espécies seriam entidades mutáveis, Lamarck propôs que as espécies apresentariam mudanças à medida que o ambiente fosse apresentado para melhor se adaptarem a ele. Outro mecanismo foi proposto quando Darwin observou que as alterações poderiam acontecer por acaso e a seleção natural faria com que somente aquelas adaptadas ao ambiente permanecessem. É bom ressaltar aqui que os dois mecanismos de aparecimento de novas características, por aquisição de informação ambiental ou ao acaso, não são necessariamente excludentes. Algumas características podem ter aparecido por acaso e outras terem sido adquiridas. De fato, nos últimos anos foram descritos diversos mecanismos moleculares nos quais o ambiente pode imprimir uma alteração na expressão gênica e esta mesma alteração pode ser transmitida através das gerações. Para entender essa história, vamos nos deter a um deles, o remodelamento da cromatina.

Estamos acostumados a ver figuras que demonstram a regulação da expressão gênica em que fatores de transcrição se ligam a uma fita de DNA para facilitar ou reprimir a ação da enzima que produz o RNA, a RNA polimerase. Nesta representação, o DNA sempre aparece como uma linha aonde as proteínas se ligam. Só que muitas vezes nos esquecemos que na verdade dentro da célula o DNA não está linearizado. Este está organizado em estruturas de maior complexidade. A dupla fita de DNA dá voltas ao redor de octâmeros de uma proteína chamada histona e esta estrutura é chamada de nucleossomo. Já os nucleossomos podem estar intimamente associados ou mais afastados, formando heterocromatinas ou eucromatinas respectivamente. A grande importância dessas estruturas é que elas regulam o acesso das proteínas que promovem a síntese de RNAs a partir da fita do DNA, quanto mais fechada a heterocromatina mais difícil chegar ao DNA. Nesse fechamento ou não da cromatina estão envolvidas diversas alterações químicas nas histonas e também a metilação de citosinas da seqüência de DNA. O que é importante então para compreendermos a idéia aqui é que a metilação do DNA está associada ao silenciamento da expressão gênica através da compactação da cromatina.

A outra parte da história que precisamos saber é como se dá a regulação neural do comportamento maternal em mamíferos. O comportamento maternal compartilha a regulação de um circuito envolvido no comportamento de estresse conhecido como eixo hipotálamo-pituitária-adrenal (HPA). O hipotálamo quando recebe um estímulo de estresse libera o hormônio de liberação de corticotropina (HLC) no sistema sanguíneo que fornece sangue à pituitária anterior. O HLC estimula a pituitária a liberar o hormônio adrenocorticotrópico (HACT) na corrente sanguínea. O HACT leva as glândulas adrenais a liberar cortisol, um hormônio que age sobre diversas partes do corpo para este atingir o estado necessário para a resposta à situação estressante. O importante para a entendermos o trabalho discutido aqui é que essa via de ativação do estresse possui uma alça de regulação negativa em que a alta de corticóides é percebida pelo sistema nervoso central que por sua vez inibe a liberação de HLC pelo hipotálamo. Assim, quando os níveis de corticóide alcançam um certo nível, o organismo possui um mecanismo para desligar a sua liberação. Um importante sensor é o hipocampo através da expressão do receptor de glicocorticóides (RG). O interessante então é que a expressão de RG no hipocampo depende de como aquele animal foi cuidado por sua mãe. Ratos filhos de mães cuidadosas expressam níveis maiores de RG do que os filhos de mães que os lambem pouco. Assim, os filhos de mães que cuidam pouco possuem um hipocampo que é menos eficiente em perceber os níveis de corticóides e inibir a liberação de HLC pelo hipotálamo. Estes animais então, atingem níveis mais altos de corticóides e respondem mais intensamente ao estresse.

A grande descoberta feita pelo grupo de Michael Meaney, na McGill University em Montreal, foi que dependendo do cuidado maternal a seqüência de DNA que regula a expressão do gene de RG (a região promotora) é diferencialmente metilada em suas citosinas. Assim, os filhotes no primeiro dia pós-natal possuem essa seqüência específica metilada e em seguida os filhotes de mães cuidadosas a desmetilam enquanto os de mães que cuidam pouco não. Assim, o DNA que regula a expressão do gene de RG no hipocampo de ratos mal cuidados fica enovelado em heterocromatina e o gene é pouco expresso. Ainda mais interessante é que as fêmeas dessa prole por suas alterações na regulação do eixo HPA repetem o comportamento de suas mães. E essa herança não é genética porque se colocarmos filhos de mães cuidadosas para serem criados por mães que cuidam pouco e vice-versa eles desenvolvem a metilação de acordo com sua mãe de criação.

Mais recentemente o mesmo grupo publicou a primeira evidência de que a regulação epigenética (esse é o termo que vem sido utilizado para descrever mecanismos de regulação gênica que independem da seqüência de DNA) do comportamento maternal seria também importante em humanos. Eles tiveram acesso ao cérebro de vítimas de abuso infantil que cometeram suicídio e compararam com cérebros de pessoas que cometeram suicídio, mas sem histórico de abuso e com controles com outras causas de morte e também sem histórico. Dentro desses três grupos as vítimas de abuso possuem menores níveis de RNA mensageiro de RG e maior metilação no promotor deste gene. Estes dados mostram que, como em ratos, há também a aquisição de uma marca no DNA de humanos que depende do comportamento parental ao qual somos submetidos.

A aquisição de caracteres do ambiente nos remete a teoria evolutiva proposta por Lamarck. Esta teoria diz que os organismos passam por alterações internas para se adaptar ao ambiente e que estes caracteres adquiridos podem ser passados às próximas gerações. Lembre-se que esta teoria não se contrapõe à de seleção natural porque ambas podem co-existir como mecanismos de modificação, mas esta foi então completamente refutada pela distinção gameta-soma proposta por August Weismann no fim do século XIX. Segundo esta distinção seria impossível que uma característica adquirida pela pele, por exemplo, fosse passada para a próxima geração já que esta não está contida nos gametas. Assim, se você for à praia e adquirir um bronzeado antes de ter um filho, isso não vai causar o escurecimento da pele do bebê. Mas como vimos aqui, na regulação epigenética do comportamento maternal a informação não é registrada na prole antes de sua mãe começar com seus cuidados. Isto é, a informação está passando através das gerações de forma independente dos gametas. E como as filhas reproduzem o comportamento das mães é possível que as netas recebam uma informação impressa em seus DNAs que foi adquirida por suas avós.

Agora então peço aos leitores que façam um esforço em imaginar um cenário. Imaginem que uma rata cuidadosa, a avó, quando teve seus filhotes, dentre eles a mãe, foi obrigada a passar longos períodos procurando por comida porque a oferta era escassa. Essa ausência na toca onde estão os filhotes fez com que estes sentissem um cuidado maternal menos freqüente. Assim, nos primeiros dias de vida essa prole não teve o estímulo que dispara a desmetilação do promotor do gene de RG. Esses animais vão ser mais sensíveis ao estresse o que inclui as mães da próxima geração. Agora imagine que quando as mães tiveram seus filhotes, a oferta de alimento era muito boa e em pouquíssimo tempo elas conseguiam voltar para a toca. Lembrem-se que as fêmeas que cuidam mal nos experimentos que discutimos acima estavam o tempo todo dentro da gaiola junto com seus filhotes. Então, a simples presença da mãe não garante o cuidado maior. Assim mesmo tendo mais tempo para passar na toca as mães da segunda geração cuidam mal dos seus filhotes. Os filhotes herdam então uma informação que veio do ambiente quando suas avós tiveram suas mães. Essa informação é passada de forma independente dos gametas.
Imagine então que ser mais estressado seja uma vantagem evolutiva, em um ambiente com muitos predadores por exemplo. Uma forma de fixar esse comportamento ao longo das gerações seria selecionar animais que tenham a seqüência do promotor menos responsiva ao ambiente. A esse tipo de seleção dá-se o nome de “Assimilação Genética” que foi proposto por Conrad Waddington nos anos 50. Waddington fez um experimento muito simples em que ele induzia defeitos nas veias das asas da mosca de fruta com uma exposição dos embriões a um choque térmico. Assim, ele começou a selecionar as moscas que tinham mais defeitos e cruzá-las entre si simulando uma situação onde o defeito fosse uma vantagem evolutiva. Mas o Waddington queria ver se a informação ambiental podia ser assimilada então em alguns embriões filhos de pais com defeitos ele não fazia o tratamento com choque térmico. Então ele observou que nesses controles depois de algumas gerações os defeitos começaram a aparecer em animais que nunca foram expostos a choque térmico. Assim, o gatilho ambiental havia sido incorporado aos indivíduos que desenvolviam o fenótipo mesmo sem o estímulo. E essa informação não é fruto de uma mutação porque acontece em vários indivíduos daquela geração enquanto a mutação só acontece em um indivíduo de cada vez.

Então, voltando ao comportamento maternal, uma possibilidade seria que o promotor do gene de RG passe em uma dada geração, após muitas em que o comportamento se repita, a ter o seu padrão de metilação independente do ambiente. Assim as fêmeas repetiriam o comportamento daquela antepassada indefinidamente. Essa população pode então se separar de outra que continua responsiva ao ambiente e haver o processo de especiação. No gênero de roedores Microtus, existem duas espécies com diferentes tipos de cuidado parental. Microtus ochrogaster é uma espécie que vive nas pradarias, é monogâmica e possui o cuidado parental de ambos os pais, os casais se repetem na seguinte época de acasalamento. Já Microtus montanus vive nas montanhas e como a maioria das espécies de mamíferos é poligâmica e só possui cuidado maternal. Poderiam estas duas espécies terem divergido a partir de modificações por caracteres adquiridos? De fato já foi mostrado que a sinalização por glicocorticóides atua na escolha dos pares nesses animais.

Vale lembrar que aqui não há vontade do organismo em se adaptar ao ambiente, uma característica usualmente atribuída à teoria Lamarckista. Ainda falta uma evidência que mostre que uma informação epigenética herdada pode levar a especiação. Mas devemos nos manter abertos a possibilidade de uma característica ambiental impressa de alguma forma em um antepassado e que seja herdável por mecanismos independentes da fertilização de gametas seja suficiente para causar a origem de uma nova espécie. A incorporação de informação ambiental pode ser muito importante por afetar muitos indivíduos de uma geração ao mesmo tempo e assim ser mais facilmente incorporada do que uma mudança causada por mutação, principalmente em populações muito grandes.

“No mesmo clima, habitats e condições muito diferentes causam a princípio meramente alterações nos indivíduos expostos à elas; porém, ao longo do tempo a mudança contínua no habitat dos indivíduos aos quais me refiro, vivendo e reproduzindo nessas novas condições, induz alterações nestes que se tornam mais ou menos essenciais para a sua existência; portanto, após uma longa sucessão de gerações esses indivíduos, originalmente pertencentes a uma espécie, se tornam no fim transformados em uma nova espécie diferente da primeira.”
Jean Baptiste Lamarck, 1809

Sugestões de leitura:
Lewontin, RC (2002) A tripla hélice. Companhia das letras.

Waddington, CH (1979) Instrumental para o pensamento. Itatiaia

Pros mais entendidos:
Waddington CH (1953) Genetic Assimilation of an Acquired Character. Evolution, Vol. 7 pp. 118-126

McGowan e colaboradores (2009) Epigenetic regulation of the glucocorticoid receptor in human brain associates with childhood abuse. Nat Neurosci. 12:342-8.

Weaver e colaboradores (2004) Epigenetic programming by maternal behavior. Nat Neurosci. 7:847-54