terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Sereias existem? Pergunte às borboletas!



Se tem uma coisa que é sagrada em biologia é o fato de que espécies existem e são diferentes entre si. E elas são diferentes porque em algum momento na evolução pararam de cruzar entre si e trocar informações. A possibilidade de cruzamento entre espécies diferentes sempre esteve presente no nosso imaginário, o que é muito bem ilustrado nas mitologias com seres híbridos como as sereias ou o minotauro. Mas será que a fusão entre espécies é pura ficção? Um artigo recente publicado na Proocedings of the National Academy of Sciences trouxe de volta para a ciência a discussão sobre a possibilidade de ter ocorrido fusão entre espécies durante a evolução. E teve gente que não gostou nada.

Todos vocês que dedicaram um pouquinho da sua infância para observar a natureza sabem que as borboletas se desenvolvem de lagartas. As lagartas, após algum tempo de vida (geralmente bem maior que a vida da borboleta), criam um casulo onde fazem sua metamorfose em borboletas ou mariposas. Pois é, acontece que as borboletas, assim como todos os insetos, tem a característica de possuirem três pares de pernas que saem de seus segmentos toráxicos. Mas as lagartas das borboletas (chamadas de larvas) possuem não só patas nos segmentos toráxicos mas também nos segmentos abdominais. Então, esse sujeito lá em Liverpool chamado Donald Williamson publicou um artigo interessante propondo uma hipótese de que as larvas dos insetos seriam derivadas de um híbrido entre um inseto e um onicófora (olhe aqui em baixo as fotos de um onicófora, de uma lagarta e de uma borboleta). O onicófora sim possui patas no abdômen. Assim. durante a fase larval o lado onicófora se expressaria e quando adultos o lado inseto seria exposto.








Um problema deste artigo é que ele é puramente teórico. Então, as críticas são pesadas neste ponto. A galera chega pisando tipo “Como assim esse cara chega e publica um artigo com uma idéia estapafúrdia, pedindo pros outros fazerem um experimento enquanto eu tenho que ralar a barriga na bancada pra publicar o meu?” Eu não vejo nenhum problema na publicação de artigos teóricos enquanto as evidências não existem. Mas de fato, concordo que o Williamson não foi cuidadoso na hora de enumerar as previsões de sua hipótese e cometeu deslizes. Mas ao invés de derrubar a hipótese vou tentar corrigir aqui as previsões do Williamson.

Uma das previsões do Williamson foi a de que os insetos que possuem uma fase larval teriam genomas maiores que os de insetos que se desenvolvem direto (e que não seriam derivados do ancestral que fundiu com onicófora) e também que os de onicóforas. Esta previsao foi completamente derrubada por um artigo publicado na mesma edição da revista por Hart e Grosberg. Na verdade insetos que possuem fase larval parecem ter genomas até menores que estes outros dois grupos. Mas eu defendo a idéia aqui de que esta previsão do Williamson estava errada. Vamos imaginar aqui aquela célula (provavelmente um gameta) que foi fusionada (ou fertilizada) com uma célula de uma outra espécie. Bom, quando dois gametas da mesma espécie se fundem, eles possuem um número de cromossomos que são correspondentes aos cromossomos que vieram de cada gameta. Já no caso de uma fusão entre células de espécies diferentes a quantidade de cromossomos diferentes (que não possuem seu par) será grande principalmente se as espécies forem muito distantes. Durante a produção artificial de anticorpos é comum um passo em que duas células são fusionadas gerando uma célula 4n. Essa célula porém, não permanece com este genoma inflado e elimina (aparentemente aleatoriamente) metade do genoma até se tornar 2n. Então existe um mecanismo celular de regulação do tamanho do genoma que deve ter causadao a eliminação de boa parte do genoma gerado pela fusão entre espécies. Outro fato que o Williamson ignorou foi que oque os trabalhos de sequenciamento genômico mostram é que oa composição do genoma não é somente derivada da seleção natural sobre o fenótipo que eles ajudam a formar mas também da translocação de sequências de DNA que ficam saltando de um lado pro outro alterando a composição de cada cromossomo. Dessa promiscuidade intragenômica cromossomos de espécies diferentes podem ter compartilhado sequências antes da eliminação de cromossomos estranhos. Outra constatação importante é que o tamanho do genoma não tem relação com a complexidade do organismo. Assim, o tamanho do genoma de um animal gerado por fusão não é tão previsível.

Mas então, acho que apesar de salvar o Williamson dessa eu continuo não ajudando muito. Bom, o segredo é olhar para o desenvolvimento desses animais. Será que para desenvolver um fenótipo parecido com um onicófora a borboleta precisa de um genoma de onicófora inteiro? A resposta é não. Existe muita redundância nas funções de genes de desenvolvimento entre espécies. Um conceito importante aqui é o de homologia molecular (também chamada de homologia profunda). Se veterbrados terrestres possuem quatro patas, isso acontece porque todos derivaram de um ancestral comum que possuia quatro patas. Então podemos dizer que o nosso braço é homólogo à asa do morcego porque ambos derivaram da pata dianteira de um ancestral comum. E durante o desenvolvimento destas duas estruturas, genes homólogos foram expressos para regular este processo. Só que muitas vezes a homologia entre genes atravessa até mesmo grupos bem distantes onde a esturtura que regulam não está necessariamente em uma relação de homologia. Por exemplo, moscas tem olhos e nós também. Porém estes olhos surgiram independentemente na evolução. Os nossos olhos e os das moscas não são derivados dos olhos de um ancestral comum. Mas o gene que regula o desenvolvimento dos olhos de moscas e os nossos, chamado Pax6, é homólogo nas duas espécies. Isso pode ser provado comparando-se as sequências dos dois. E se expressarmos artificialmente o gene Pax6 de camundongos nas células que darão origem à mandíbula da mosca, estas células dão origem a um olho de mosca (veja na figura aqui ao lado). Logo, para gerar uma lagarta, o genoma da borboleta não precisaria de tantos genes de onicófora assim. Só daqueles que regulam o desenvolvimento de estruturas exclusivas de onicóforas, como as patas no abdômen.

Quais seriam então os genes cruciais?

Durante o desenvolvimento dos animais diversos eventos celulares e moleculares levam ao estabelecimento dos eixos corporais. Então, quando ainda somos embriões, alguns genes são expressos em locais específicos do corpo. Dentre estes estão uma classe de genes chamadas genes hox. Esses são genes que regulam a expressão de outros genes, chamados genes mestre. Por regularem a expressão de outros genes, os genes hox causam modificações muito grandes nas células que os expressam como dar identidade. Assim, células do abdômen sabem que são do abdômen porque expressam o gene hox do abdômen e amesma coisa acontece no tórax. Na mosca de fruta Drosophila melanogaster, um inseto, o gene hox Ultrabithorax (Ubx) é expresso no abdômen. Dentre as coisas que ele faz lá está a inibição do desenvolvimento das patas. Se induzirmos artificialmente a expressão desse gene no tórax, o desenvolvimento das patas é inibido. Já nas onicóforas, é esperado que os genes que regulam a identidade de abdomem não inibam o desenvolvimento de patas. Então, se formos pensar tem alguma coisa acontecendo com o Ubx de borboletas durante a fase larval que faz com que ele permita o desenvolvimento de patas no abdômem. E de fato, se expressarmos artificialmente o gene Ubx de uma onicófora no tórax de uma mosca, esse falha em dar certas características abdominais (dentre elas a ausência de patas). Galant e Carrol (2000) foram mais longe ainda e identificaram qual é a partezinha do Ubx de moscas que falta em Ubx de onicóforas para induzir a identidade abdominal. Fizeram uma proteína mista que era quase toda o Ubx de onicóforas com uma ponta do Ubx de moscas e induziram a expressão no tórax de moscas. Essa proteína sim induziu a identidade de abdômen. Então se tem um candidato a estar com a expressão complicada na larva da borboleta esse é o Ubx, mais especificamente nessa pontinha que as onicóforas não tem.

Mas apesar de não terem testado especificamente a atividade de Ubx de borboletas, Galant e Carrol seqüenciaram o gene e este possui a tal pontinha. Eles até testaram a atividade do Ubx de besouros mas assim como as larvas de moscas, as larvas de besouro não tem patas no abdômen (as larvas de besouros tem seis patas no tórax, como os adultos, e as de moscas não possuem patas). Então o que acontece com o Ubx de borboletas durante o desenvolvimento das lagartas continua um mistério. É possível que elas também possuam um segundo gene derivado da fusão com onicóforas? Sinceramente não sei se ao seqüenciar o gene esses autores podem ter perdido o segundo. Mas outros mecanismos de regulação, como a edição do RNA mensageiro já feito (“splicing” alternativo) me parecem mais prováveis.

Mas e o cruzamento entre espécies? Os organismos criaram múltiplos mecanismos para que isso não ocorra. Estes vão desde moléculas de reconhecimento na superfície dos gametas até data marcada para liberação destes na água do mar. Mas desde que o sexo foi inventado os animais praticam sexo interespecífico. Imagina só, aquele fundo do mar no cambriano devia ser a maior suruba! E se tem uma coisa que os mecanismos biológicos são famosos é por falhar. Eu acho que a hipótese do Williamson deve ser levada a sério. Mas a esta falta um princípio básico, ser observada sob a luz da biologia do desenvolvimento.

Pros curiosos:

Essa sereia lá em cima foi feita por um artista chamado Walmor Corrêa, que brinca muito com essa coisa dos híbridos. O site dele vocês encontram aqui.

3 comentários:

Anônimo disse...

eu não sei se as sereias existem ,mas acredito e duvido se as borboletas vão saber de alguma coisa.

Anônimo disse...

por onde saia o bebe da sereia se é que ela existe?

DUARTE SILVA disse...

Acho que a gente devia perguntar à Mula Sem Cabeça ou ao Sacy Pereré.